21/12/10

Natal de Bissau...














amigos,

partilho um texto de um pensador, khalil gibrain (grande inspirador da minha loucura) que reflecte sobre o dar e o receber.

um tema que me inquieta todos os dias e que é adequado à época natalícia.

que a meditação e a visão de um presépio negro nos ajude a cortar as amarras que nos prendem, a abrir o espírito ao outro, a aceitar as diferenças, a lidar com a procura dos diferentes caminhos da felicidade, nos ajude a dar e a receber cada vez melhor.

com um abraço cheio de esperança num mundo melhor, os desejos de um feliz natal e de um ano novo vivido com intensidade,




A Dávida

Vós pouco dais quando dais de vossas posses!

É quando derdes de vós próprios, que realmente dais.

Pois, o que são vossas posses, senão coisas que guardais por medo de precisardes dela amanhã?

E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos nas areias movediças, enquanto segue os peregrinos para a cidade santa?

E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade?

Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável?

Aos que dão pouco do muito que possuem, fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza seus presentes.

E há os que pouco têm e dão-no inteiramente.

Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam.

E há os que dão com alegria, e essa alegria é sua recompensa.

E há os que dão com pena, e essa pena é seu batismo.

E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria e sem pensar na virtude:

Dão como no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço.

É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido;

E para os generosos, procurar quem receberá é uma alegria maior ainda que a de dar.

Existe alguma coisa que possais conservar?

Tudo que possuís será dado.

Dai agora, portanto, para que a dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros.

Dizeis muitas vezes: " Eu daria, mas somente a quem merece".

As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos.

Dão para continuar a viver, pois reter é perecer.

Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo ou mais.

E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber?

E quem sois vós para que os homens devam expor seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu orgulho rebaixado?

Procurai ver primeiro, se vós próprios mereceis ser doadores e instrumentos do dom.

Pois, na verdade, é a vida que dá a vida - enquanto vós, que vos julgais doadores, sois simples testemunhas.

E vós que recebeis - e vós todos recebeis - não assumais nenhum encargo de gratidão, afim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores.

Antes, erguei-vos, juntos com eles, sobre asas feitas de suas dádivas.

Pois, na verdade, se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai.

Khalil Gibrain

11/12/10

Notícias de Bissau III


meus amigos

estou a viver uma experiência muito interessante. estou numa cidade perto de Dakar. vim a trabalho participar numa conferência das caritas dos países da região do sahel e dos seus parceiros dos países do norte. vim, sobretudo, para servir de tradutora à secretária geral da caritas guiné-bissau, porque os trabalhos são em francês, uma vez que a fec é parceira dessa instituição.

é uma boa oportunidade ouvir as experiências de outros países vizinhos que têm problemas humanitários - há delegações do senegal, do mali, da mauritânia, do burkina fasso, do níger, do tchad - e de países que têm orçamento para os ajudar - estão presentes a caritas inglesa, espanhola, americana e francesa.

os países da região do sahel , são os países que se encontram dentro de uma faixa do continente africano, da costa ocidental à oriental, que estão numa zona em desertificação e que é muito vulnerável a situações de crise como as secas e as inundações. para além disso, quase todos têm instabilidade política, o que agrava os factores económicos.

em todos estes países, a caritas (a ong da igreja católica em todo o mundo. é a acção social da igreja e está organizada por dioceses. é a segunda maior ong do mundo, a seguir à cruz vermelha) tem um papel fundamental na resposta às populações em situações de crise provocadas por catástrofes naturais.

o congresso em que estou a participar é um dos encontros que este grupo de trabalho dinamiza anualmente, para tratar destas preocupações comuns. o tema deste ano é: “os desafios, as oportunidades e as perspectivas da agricultura no sahel”.

é um tema de extrema importância porque tenta abordar as formas de prevenção da fome em situações de emergência ou catástrofes naturais. de facto, e esse é um tema muito discutido nos países africanos, seria de uma extrema importância que cada país africano conseguisse assegurar a sua segurança alimentar de forma a evitar as fomes, a evitar a sua vulnerabilidade e dependência do clima ou da ajuda internacional.
está a ser uma experiência muito interessante para mim. a verdade é que até há bem pouco tempo não sabia muito sobre o assunto. já tinha ouvido o miguel falar sobre isto porque este é um dos domínios da tiniguena mas só agora, ao preparar-me para a conferência que tive de fazer sobre a situação na guiné-bissau, é que me dediquei verdadeiramente ao assunto. e estou a aprender muitíssimo.

a cartitas guiné-bissau está a participar, pela primeira vez, neste encontro porque o país tem zonas, sobretudo no leste e no norte, onde a desertificação (geográfica, não no sentido de fuga de população) se começa a notar, bem como outras consequências das alterações climáticas (subida do nível das águas do mar que está a provocar a salinização das águas dos rios, o que, por sua vez, está a pôr em perigo o cultivo do arroz, por exemplo).
a apresentação da guiné-bissau foi esta tarde e correu muito bem.

para além disso estão a saber-me bem estes dias “fora” da rotina. é sempre bom viajar e conhecer outras realidades, outros problemas, ter outros desafios.

o mês de novembro foi um mês cheio de trabalho na rádio e na fec. em fevereiro próximo a fec irá celebrar os 10 anos de existência na guiné-bissau e já estamos a começar os preparativos. o programa de rádio “tabanka do português” continua o seu caminho e estamos a conseguir chegar a cada vez mais população, uma vez que estamos a distribuir o programa por diversas rádios comunitárias onde a rádio nacional não chega. é bom!

no mês passado fui a canchungo várias vezes – uma porque aproveitei uma boleia e queria muito ir ver o meu pequenote, o uyé; outra porque fui a um pic-nic organizado pelo colega que agora está em cxg aquando do seu aniversário, e outra porque levei os meus amigos portugueses que me vieram visitar.

é verdade, recebi os meus primeiros visitantes desde que cá estou e é uma experiência muito agradável poder mostrar a minha terra aos meus amigos. tentei organizar tudo o mais possível, uma vez que não há propriamente “pacotes” vendidos nas agências de viagem portuguesas. acho que os meus amigos não se arrependeram de ter vindo.

com eles fui visitar a escola de bidjope, aquela construída com fundos recolhidos em portugal (talvez mesmo por ti, que estás a ler este texto), a missão católica de canchungo (onde já temos cerca de 40 crianças apadrinhadas), e muitos, muitos sítios bonitos na guiné. neste preciso momento devem estar para bafatá, depois de um fim-de-semana nas ilhas!

tenho outra novidade para contar, quase esquecia!
eu e o emanuel, um colega meu vizinho, achamos que o espírito natalício estava fraco por aqui – nada de frio, de cachecóis e gorros, de símbolos natalícios, de família (as nossas, pelo menos), de música, de neve… tudo a que o natal nos habituou desde a infância. :D andamos então uns tempos a cantarolar “christmas carols” pelos corredores da casa e do trabalho… até que nos lembramos: e se organizássemos um concerto de natal/ano novo??? e se bem o pensamos… melhor o fizemos! tomamos a iniciativa (difícil!!) de unir cooperantes de várias nacionalidades em prole de um objectivo comum. falamos com o pároco e o coro da catedral de bissau e… voilà!! teremos um concerto no dia 29 de janeiro, de início de ano (depois dos cooperantes voltarem de natal, por isso a data tão tardia!) com o coro da catedral e cerca de 20 cantores amadores, de diversas nacionalidades, cheios de boa vontade, que se uniram pela simples razão de gostarem de cantar! estou toda entusiasmada!!

para dar uma ideia de universalidade, escolhemos músicas de natal em diferentes línguas - latim, português, inglês, francês, italiano, alemão - e terminaremos todos a cantar uma peça em crioulo. para além disso, e porque o coro da catedral também canta connosco, estamos a tentar uns arranjos bem multi-culturais! já imaginaram um “adeste fideles” cheio de ritmo, ao som do batuque? asseguro-vos que fica fantástico! estilo “fusão” :D (e o nosso d. joão iv que nos perdoe!)

o mês de novembro foi também o mês das celebrações da independência de angola. o centro cultural português, em parceria com a embaixada angolana, passou diversos filmes e documentários sobre angola e eu tentei ir sempre que pude. passaram filmes muito interessantes mas quase todos chocantes – quer sobre o tempo colonial, quer sobre o pós-independência. será que é agora que angola encontra o seu caminho? ou será que vai voltar a perder-se nos meandros do petróleo, criando uma luanda desfasada do resto do país, uma luanda de e para brancos e elites, esquecendo a população? …

em cacheu teve lugar um grande acontecimento – o festival dos quilombolas. com muita pena minha não pude assistir a nenhum espectáculo, mas, afortunadamente, acabei por assistir ao encerramento, em bissau.
explico – a guiné-bissau era um dos locais privilegiados pelos portugueses na captura de escravos para o brasil. os negreiros aproveitavam-se das lutas étnicas desta região e faziam negócio com algumas etnias mais fortes que lhes vendiam os negros que faziam prisioneiros em etnias mais fracas. todos sabemos como estes escravos chegavam ao brasil – acho que não há ninguém que não se lembre das imagens dos barcos negreiros dos livros de história…
alguns destes escravos mais fortes, conseguiam fugir aos seus senhores e refugiavam-se nas matas brasileiras. conforme se iam juntando, criavam comunidades chamadas de quilombos. muitos brasileiros na actualidade provêm destes quilombos e denominam-se de quilombolas. um grupo específico de uma região brasileira decidiu fazer pesquisas sobre os seus antepassados e descobriu que descendiam de escravos provenientes da região de cacheu e decidiram organizar uma visita à terra dos seus antepassados.
foi uma experiência fantástica – cacheu engalanou-se toda para receber os “familiares brasileiros”. foi uma semana de festa, música, dança, comida… eram esperadas mais de 500 pessoas em cacheu naquela semana! algumas ongs apoiaram o evento, assim como a embaixada brasileira. o encerramento teve lugar no centro cultural brasileiro e foi uma cerimónia muito animada à qual eu tive a sorte de assistir!

e cá fica mais uma partilha!

até breve e bom espírito natalício…

05/11/10

Notícias de Bissau II


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há bichos… bichos por todo o lado, milhares de tamanhos, feitios, cores e diferentes graus de incomodação… bichos que nos caem em cima vindos de todo o lado… bichos… a guiné é a terra dos bichos! não há mosquiteiro que proteja!

sinal do fim da chuva, do aperto de calor durante um mês, e promessa de dois ou três meses mais amenos, em seguida.

com a mudança do tempo todo o mundo ficou doente entre gripes, constipações, narizes e gargantas… eu não escapei, mas o miguel sim. quem diria!

por aqui tudo bem!

tem sido engraçado receber uma equipa nova, com uma visão refrescante sobre tudo o que acontece. para alguns é mesmo a primeira vez em áfrica, o que é sempre muito marcante. um dos novos colegas tem observações muito engraçadas sobre o que vê. uma das coisas que mais o marcou nestes primeiros tempos foi o facto de ver porcos por todo o lado. isso fez-me voltar a reparar nisso… de facto, eu já nem reparo que há vacas, porcos, cabras e galinhas a circular nas ruas. para mim, estranho é chegar a portugal e não ver um único animalzinho a dar o seu colorido às ruas!

eu e o miguel falamos nisso de vez em quando - não queremos deixar de nos espantar com as diferenças que esta vida nos proporciona. não queremos que tudo passe a ser “normal”. temos de nos manter atentos! outra coisa da qual falamos regularmente é sobre o risco que corremos de ficar “desencantados” com o nosso trabalho, com a guiné, com áfrica. é muito normal entre as pessoas que vivem a sua vida em locais destes que, passado algum tempo e como resposta às dificuldades sentidas, à imobilidade das coisas, ao ritmo lento com que tudo acontece, se sintam desiludidas, desencantadas, descrentes.

como todos, corremos esse risco. mas não queremos ficar descrentes nem amargos. se isso acontecer, e espero que o notemos a tempo, queremos poder mudar de país, de cultura, para continuarmos a realizar um trabalho de corpo e alma, acreditando na sua utilidade e respeitando a cultura onde estamos inseridos e as pessoas para quem trabalhamos.

viver entre culturas diferentes é sempre um desafio que apenas a convivência, a abertura de espírito e o tempo podem ajudar a vencer.

durante este tempo na guiné dei por mim muitas vezes a pensar que o povo guineense não era extremamente simpático (sei que falar em “povo guineense” é um abuso de generalização e que tudo o que vou escrever em seguida está profundamente marcado pela limitação que todas as generalização têm, no entanto, é a partilha de um sentimento que me levou a observar melhor as pessoas e a tentar melhor compreendê-las). e claro que não pude deixar de o fazer, muitas vezes comparando com a minha experiência em moçambique. no entanto, muitas das atitudes que via apontavam-me para a extrema camaradagem dos guineenses, o que me deixava confusa, sem saber bem como explicar o que sentia, nem para mim mesma, nem para os outros. e, quem já me conhece, deve saber que não descansei enquanto não consegui perceber isto um pouco melhor.

na verdade, fui-me apercebendo que o povo guineense tem uma forma diferente de acolher, uma forma diferente de ser simpático. com diferente leia-se, ‘diferente da nossa’. para eles, somos nós que somos diferentes.

raras vezes ouvimos dizer um “por favor”, um “obrigado”, um “desculpe”. muitas vezes nem resposta nos dão. quando paramos um táxi e lhe perguntamos se vai para a praça, é normal que eles arranquem sem dar nenhuma resposta, percebendo nós que não, não iam para a praça (e isto acontece tanto com estrangeiros como com guineenses). também é verdade que raramente são eles os primeiros a cumprimentar-me quando vou na rua, ao contrário do que me sucedia em moçambique em que demorava horas para fazer um pequeno percurso a pé só porque todos me paravam e queriam conversar comigo.

o guineense parece-me mais desconfiado, tem mais ‘o pé atrás’. quem sabe como explicar isso? a diversidade de povos num espaço tão pequeno? a colonização mais intensa? a guerra colonial e civil que os transformou em potenciais inimigos uns dos outros? assim de repente não sei explicar. realmente, à primeira vista e segundo os parâmetros de uma cultura mais europeia, penso que talvez os guineenses não sejam um povo “simpático”.

no entanto, têm outra característica fantástica, muito perdida no mundo - a solidariedade, a camaradagem, como há pouco disse. não há nunca quem fique sem comer quando chega a uma ‘morança’, à hora da “bianda”. não há quem fiquei na estrada porque há sempre quem pare e ajude, não partindo sem que tudo fique ‘dritu’. não há quem fique de pé porque há sempre lugar para mais um em qualquer banco. não há ladrão que fique sem uma boa sova porque todos se juntam para o apanhar e o fazerem pagar até devolver tudo o que tirou. é mesmo impressionante!

uma das coisas que me acontece com mais frequência tem a ver com as compras (para além da ajuda na estrada uma vez que o jipe continua a avariar a um ritmo alucinante!!). bandim é o nome do grande mercado de bissau, um local onde tudo existe, mas mesmo tudo! um enorme centro comercial a céu aberto, dos dois lados da estrada principal que leva o aeroporto à entrada da cidade, cheio de cores, cheiros (nem sempre agradáveis), sons… um daqueles sítios onde a guiné existe a plenos pulmões! acontece-me por diversas vezes perguntar numa ou noutra banca se tem isto ou aquilo, coisas mais ou menos complicadas (uma tripla mas com pinos finos para poder entrar nas tomadas modelo italiano da casa onde vivo. ou um adaptador, talvez…) e a verdade é que nunca vim embora de mãos vazias, não tanto devido à minha perícia em compras (quem me conhece sabe que não é uma das minhas qualidades) mas pela atenciosidade de algum rapazote de uma qualquer banca que me oferece ‘a lata de pernas para o ar feita banco’, me põe a tomar conta da sua banca e desata a correr o bandim todo à procura do que eu quero… nunca vi tal! e depois vende-mo pelo mesmo preço que acabou de pagar por ele! Só para que nunca fiquemos sem o que precisamos! com a água acontece o mesmo - gosto sempre de água fresca e nem sempre é fácil encontrar porque para se vender água fresca é necessário que a ‘banca’ tenha luz, o que não é provável que aconteça, portanto já estou mentalizada para me adaptar… mas a verdade é que nunca fiquei mal porque há sempre uma criança por perto que é mandada pelo vendedor a outra parte para me comprar ‘iagu frescu’…

um destes dias ia para a praça, para o francês, e apanhei um táxi. eu era a primeira cliente e sentei-me no lugar da frente. depois foram entrando outras pessoas pelo caminho. um dos senhores indicou o sítio para onde queria ir e eu percebi que o condutor, um rapaz novo, tinha ficado com uma cara de dúvida. Achei que ele tinha ouvido mal e repeti eu o local. percebi assim que o rapaz não sabia mesmo qual o caminho a seguir. Eeeu, num crioulo aportuguesado lá o fui orientando pelas ruas de bissau (‘bu bira na mon direita, dipus bai reto, gosi bu bira li”…). os senhores do banco de trás iam perdidos de riso - a branca, estrangeira, a falar crioulo e, ainda por cima, a indicar o caminho. meteram-se na conversa e ficamos todos em grande cavaqueira. aí o rapaz do táxi explicou-nos que era o seu primeiro dia como taxista e que nem era de Bissau. já cá tinha vindo mas era de uma região do interior. foi uma risota geral! e mais nos rimos quando, chegados aos diversos destinos de cada um de nós, ele nos perguntava quanto costumávamos pagar por aquela distância, porque nem sabia os preços!!! só na guiné, mesmo!

outra história que prova o grande espírito de solidariedade, e a responsabilidade que isso traz, dos guineenses foi uma passada com uma grande amiga, no ano passado. penso já ter contado que o grande transporte entre as regiões é a 7 places e que esta só parte quando se tiverem vendido os sete lugares, o que se pode transformar numa espera interminável, como devem perceber. esta minha amiga andava a viajar e tinha de apanhar várias 7 places ao longo do caminho (quando fui à gâmbia, penso que tivemos de apanhar quatro até chegarmos ao nosso destino), o que se foi tornando cada vez mais desesperante pelo tempo da espera entre cada uma. já mesmo a apanhar a última que a traria a bissau, essa minha colega ‘passou-se’ e teve uma atitude ‘à branco’ (pois… às vezes não se consegue mesmo evitar! :D) - decidiu comprar os bilhetes que faltavam para que a 7 places pudesse partir naquele preciso momento. para o motorista não fazia problema nenhum - afinal, tinha os bilhetes todos pagos e podia partir. para os outros viajantes, também parecia ser uma boa ideia - partiam todos mais cedo!...

pois aí é que está a especialidade deste povo - nunca esquecerei esta cena por mais que viva - os outros passageiros viraram-se para a minha amiga e perguntaram-lhe como podia ela fazer uma coisa dessas, sem pensar nas pessoas que iriam chegar, que precisavam daqueles lugares a mais que ela comprou. Pessoas que teriam agora de esperar muito mais tempo para que chegasse uma nova 7 places, podendo até ficar sem transporte naquele dia…

Sem comentários…

Perante isto só posso interrogar-me sobre os meus conceitos de simpatia!

E termino com outra história só possível neste país tão descontraído e relaxado – aqui, na legislação, o dia do feriado de Todos os Santos, como em todo o mundo, é dia 1 de Novembro, mas como as pessoas querem ir no dia 2 aos cemitérios, visitar e prestar homenagem aos seus mortos, o feriado real goza-se neste dia, e não no dia determinado!

E esta, hein? :D

Uma boa semana!

14/10/10

Notícias de Bissau I


após quase dois meses cá estou eu de volta à partilha no meu “nô djunta mon”. para não variar, começo por pedir desculpa por estar ausente tanto tempo… :D e sei que me perdoam, até porque acabei por falar ou estar com muitos durante os dias em que estive pelo porto.

o mês de agosto, depois da mudança de canchungo para bissau, trouxe-nos alguns momentos de paz. Eu, em relativas férias, o miguel em ritmo lento, uma vez que era dos poucos que não tinha férias e, portanto, a tiniguena estava a meio gás. Foi bom, depois de alguns meses mais afastados, voltarmos a ter tanto tempo para nós.

a chuva foi tanta, tanta, que bissau inteira alagou e pouco saímos de casa. o bom foi que, sempre que chovia (e isso foi quase sempre), o tempo refrescava um pouco.
no final do mês, viajei para portugal para passar uns dias pelo norte, antes de iniciar a formação de preparação para o ano, em lisboa. custou-me deixar o miguel mas foi muito bom ter tempo para a família e os amigos. é tão bom voltar e parecer que nem saímos, sermos acolhidos com braços abertos por todo o lado. se me perguntassem qual é, para mim, a vantagem de se ser “emigrante”, eu diria essa – a possibilidade de voltar e ser recebida com um abraço por tantos. não deveria ser assim… deveríamos sempre dar valor aos que temos à volta, mas a verdade é que a distância também nos ajuda a atribuir esse valor (e falo tanto por quem fica como por quem parte!).

apesar do pouco tempo, este foi muito bem aproveitado e, nos entretantos, deu para descansar um pouco.

lisboa foram quase duas semanas em “terra de ninguém”… desculpem-me falar assim, mas foi mesmo um sentimento estranho. não tinha os meus, não tinha o miguel, a equipa nova da fec ainda não era “a minha equipa”… foram dias estranhos e até um pouco difíceis mas… tudo se leva quando há um “bem maior”.

durante estes dias pude perceber melhor as actividades que me estão destinadas para este ano e pude apoiar um pouco os novos colegas na abordagem à realidade guineense e suas próprias actividades.

apeteceu-me muito regressar à guiné, apesar das saudades já sentidas pelos que, mais uma vez, iria deixar. foi bom o miguel ter ficado – deu-me uma razão para voltar (ainda que houvesse outras, claro).

mas nem assim consegui deixar de sentir o frio no estômago ao aterrar no aeroporto osvaldo vieira… aquele avião não é só um transporte no espaço… de cada vez que faço esta viagem sinto que viajo para tempos e dimensões diferentes… acho até que já escrevi sobre isto…

o miguel estava à minha espera no aeroporto, claro está, e como já conhece tudo e todos em bissau – tem amigos por todo o lado, é impressionante – já estava lá dentro, logo após o carimbo dos passaportes…

bastou um olhar para que o frio na barriga passasse e voltasse a estar em casa!

depois de um fim-de-semana a dois, em que voltamos a mudar de casa (8ª casa, desde que casamos!), parti para ndame, uma missão, perto de bissau, onde toda a equipa da fec, incluindo todos os guineenses, se reuniu em formação e team building. foi uma semana muito interessante!

o sítio é fantástico, mesmo ao estilo de missão – muito verde, muito ar livre, um céu imenso, muitas estrelas, banquinhos colocados nos sítios certos… austero a nível material mas pleno a nível espiritual. o que se pode desejar mais? como alguém dizia, depois das semanas loucas em portugal a tentar aprender tudo na formação, com imensas burocracias para tratar e com todo o stress das despedidas, é óptimo ter uma semana assim, com tempo para nós, para nos centrarmos no sentido do que estamos aqui a fazer.

gostei mesmo muito – de dia tínhamos formação sobre o trabalho, e já trabalhamos mesmo naquilo que irá ser o ano de cada um de nós, e à noite havia sempre equipas designadas para os momentos de animação que foram mesmo animados. o miguel, para se meter comigo, diz que pelo que eu conto foi mais uma semana de “campo de férias” do que de formação. :D mas eu não tenho nada contra. só quem nunca fez “campos de férias” é que não sabe o que perdeu!! :D

a última semana de setembro começou com cada equipa a ir para o seu posto de trabalho – canchungo, bafatá e bissau.

por solidariedade, e com uma lágrima no canto do olho, fui acompanhar a equipa de canchungo. Ainda me lembro do choque que tive quando chegamos, sozinhos, e vimos a casa… quisemos amparar um pouco o choque! :D mas a aventura estava reservada para nós… na viagem de ida, furamos um pneu do nosso jipe… não há viagem a canchungo em que não nos aconteça alguma coisa! mas bem.. apesar de não termos macaco (!!) lá nos arranjamos com a ajuda do carro da fec. afinal, havia pneu suplente e isso é o mais importante! estar lá foi óptimo, sobretudo por poder rever os amigos. é engraçado ir na rua e ouvir o nosso nome - “miguel, lassa” – sempre acompanhado de grandes sorrisos e braços a acenar… isto vai-me fazer falta!

no regresso, nova aventura - furamos outro pneu… mas agora, nem macaco nem suplente! lá voltamos para trás, para a povoação mais próxima, bula. o sol a pôr-se, quase escuro… lá encontramos (graças a Deus o Cirilo estava connosco) um senhor que tinha pneus. depois de muito procurar na sua improvisada oficina, com as lanternas e as luzes dos telemóveis, o senhor acabou por encontrar um pneu igual que servia no nosso jipe. quando o encheu percebeu que estava furado mas, como o furo era pequeno, colou-o para podermos chegar a bissau em segurança. e foi isso mesmo que o pneu durou! quando chegamos a bissau e paramos para jantar ele ainda estava razoável, mas quando saímos, encontramo-lo completamente em baixo. acabamos a noite a ir para casa de táxi! foi uma bela recompensa pela boa vontade! :D

a semana passou comigo a ser apresentada às pessoas com quem me irei relacionar durante o ano – jornalistas da rádio sol mansi (rsm - uma rádio nacional equivalente à Renascença) de Bissau e jornalistas da rsm de mansoa. serão o meu público-alvo, como os projectos gostam de dizer! ainda muito trabalho de escritório, muitas reuniões de preparação… o necessário para enraizar bem este início, de forma a ficar bem forte para o terreno.

na quinta dessa primeira semana já fui a mansoa gravar o meu primeiro programa de rádio – “tabanka do português”. foi muito engraçado! nunca tinha trabalhado numa rádio e foi interessante ver como tudo funciona, mesmo sem as mais altas tecnologias. o programa é apresentado por mim e pelo meu colega guineense, o mussa, e funcionou muito bem. treinamos o texto algumas vezes para que ele se sinta à vontade na leitura e partimos para a gravação. também gostei muito de sugerir as músicas para o programa e elaborar as matérias para as diferentes rubricas do programa – passatempos, poemas, comparação do crioulo com o português, etc. ainda vou descobrir que também nasci para isto!! :D

no regresso dessa viagem a mansoa, percebi que um dos pneus do meu jipe estava muito vazio e enchi-o antes de regressar a bissau. a viagem correu bem, mas quando cheguei a casa, percebi que tinha furado outro pneu… haja paciência! três pneus em cinco dias! deve ser um novo recorde! :D

vou fazer esta viagem todas as semanas durante este ano e é algo que faço com muita felicidade. geralmente faço a viagem sozinha, o que me permite deixar a cabeça viajar para onde ela quer, enquanto o meu “piloto automático” tenta fugir aos buracos, causados pelas chuvas diluvianas que caem há cinco meses e causadores de tantos estragos nos carros.

sabem-me tão bem estes momentos! a paisagem é fantástica – são 70 quilómetros de rectas, variando entre vegetação intensa e bolanha (os campos de arroz). nos percursos de vegetação cheira sempre à multiplicidade de verdes existentes, geralmente mais do que aqueles que se podem observar, nos de bolanha cheira a água forte, água que submerge os arrozais e permite sobreviver na guiné. já se vêem muitas pessoas metidas nessas águas até ao peito (nunca entrar em águas paradas – dizem-nos na consulta do viajante!). ainda não é tempo de apanhar o arroz, mas é necessário cuidar da bolanha, vai um ano de muita chuva este, e é preciso aproveitá-lo bem.

pelo caminho, muitas pessoas a pé, idas ou vindas do trabalho do campo. crianças que nos acenam, enquanto nos gritam um “brancoooooooo, umpeleleeeee” que fica a soar por alguns instantes. não consigo nunca controlar o grande sorriso que me vem imediatamente… por vezes grito um “preto, umbaaaaaau”, em resposta, o que provoca uma explosão de gargalhadas nos pequenos… se fosse sempre assim tão fácil lidar com as diferenças ao longo da vida, pela sua simples enunciação a plenos pulmões…

aproveito estas viagens, em que me sinto totalmente em comunhão com a natureza e com tudo o que me rodeia, para agradecer a Deus tudo o que de maravilhoso vai acontecendo. agradeço por mim e até por aqueles que não sabem o que é a gratidão. são momentos de grande intensidade para mim, as viagens.

voltando ao trabalho que faço, esta segunda semana já foi uma semana-tipo: às segundas estarei no escritório da fec, em bissau, a tratar do plano de comunicação da instituição (temos publicações impressas e on-line regulares que é preciso alimentar com material fec-gb, diversas campanhas e, particularmente este ano, a celebração dos 10 anos da fec- gb); às terças, quartas e sextas estou na antena da rsm, em bissau, a ajudar a preparar o material para os blocos noticiosos em português, orientando os jornalistas, corrigindo as suas peças, ajudando na dicção e entoação da pivot, entre outras coisas; às quintas vou, então, a mansoa, à antena da rádio, gravar o programa “tabanka do português” e dar apoio ao programa lusofonias. este programa passa em portugal na rádio sim e é feito pela fec com o apoio de rádios nos diversos países lusófonos. aqui da guiné sai uma pequena peça semanal para integrar o lusofonias e eu estou encarregue de prestar apoio ao colega guineense que tem essa incumbência. para além disto, às sextas, mensalmente, dou formação em sala aos jornalistas da rsm e das outras seis rádios de bissau, no sentido de os capacitar num melhor uso do português na redacção e leitura das suas notícias.

por causa da rádio e da obrigação de ajudar à elaboração de cada bloco noticioso, estou cada vez mais a par das notícias e dos acontecimentos e… só me dá pena da guiné e dos guineenses… mereciam melhor do que isto!

ao fim do dia, das cinco às sete, estou a frequentar um curso de francês, no centro cultural francês (muito forte aqui devido a esta ser uma zona francófona), que dá acesso aos exames franceses e ao respectivo certificado internacional. quem sabe para que me poderá servir? nunca sei em que país estarei a seguir, portanto… estou a adorar rever os meus conhecimentos de francês e tenho a sorte de ter uma excelente professora francesa, o que é uma grande vantagem.

tempo muito ocupado (apesar de ao ritmo próprio da guiné), portanto, e muito contacto com guineenses, como eu desejava. evito, a todo o custo, cair no circuito dos “brancos de bissau”, onde é possível habitar sem ter contacto com a realidade africana. não é isto que eu procuro!

o miguel, por sua vez, também continua com imenso trabalho e responsabilidade, decorrentes da sua função na tiniguena e na sua forma apaixonada de abraçar tudo aquilo em que acredita. as coisas estão-lhe a correr bem! neste preciso momento está para cantanhez, uma zona de mata, de uma intensa biodiversidade, onde a ong tem diversos projectos ligados ao ambiente e ao desenvolvimento local. apesar de ir sempre contrariado (resiste sempre a ter de trocar o seu cantinho onde sabe que tem luz e água e comida que gosta, por uma aventura no mato onde nada disso existe e onde come peixe com arroz a todas as refeições…), acaba por adorar cada missão que faz no interior e traz sempre novas histórias para contar.

neste último fim-de-semana fui a canchungo matar saudades, mas esses episódios, e outras teorias que ando cá a magicar, ficam para outro dia.

deixo-vos só com uma frase, que me escreveram uma vez, e a qual encontrei ao desfazer novamente as malas no nosso novo cantinho.

sorri e fiquei mais disposta a gostar de bissau e das suas gentes:
“vejo Deus nos rostos dos homens e das mulheres, e no reflexo das minhas feições no espelho. encontro pelas ruas as cartas que Deus deixou cair e cada uma está assinada com o Seu nome. e ali as deixo, porque sei que aonde quer que eu vá, outras aparecerão para todo o sempre.”
walt whitman

07/08/10

Despedidas...


Custa-me sempre partir… mas gosto de fazer as malas.

Fiz as malas mais uma vez. Já saí de casa. Já deixei Canchungo.

Nunca me é, e duvido que algum dia venha a ser, fácil deixar uma casa onde fui feliz.

Apesar de todas as vezes em que me queixei da falta de água, apesar de todas as dificuldades que a casa me fez passar, ficará sempre na lembrança como um cenário de partilha de Vida. Como cenário de experiência dura mas de crescimento, cenário de proximidade das pessoas.

De tempos a tempos, gosto de olhar para a minha vida e distinguir o importante do acessório. Descobrir o essencial.

E não apenas no sentido metafórico, gosto mesmo de poder decidir quais as coisas de que preciso para continuar a viver com paz, tranquilidade e segurança. Talvez por isso tenha sobrevivido sem grandes mazelas a viver em três países, cinco cidades, sete casas, em apenas quatro anos.

É de uma liberdade estonteante perceber que quase nada é essencial… as roupas, estas ou outras, um mínimo de produtos de higiene e medicamentos, algumas fotos, alguns livros, alguma música… sempre “estas ou outras”. Quando partimos é bom que a mala tenha espaço para permitir que o que vamos encontrar à chegada se instale nela.

O essencial está sempre connosco, se partimos inteiros. O essencial vai fazendo casa em nós. O essencial é a capacidade de fazer casa em qualquer lugar. O essencial é esse paradoxo de ir recheado com o que levamos de nosso e nos apresentarmos vazios para poder preencher com o que é novo.

Mais uma vez tive de reduzir a minha vida ao essencial, para vir a descobrir que Canchungo inteiro coube na minha mala. Essa que transporto para qualquer lado mundo. Essa que faz casa em qualquer lugar.

Gosto de fazer as malas… mas custa-me sempre partir.

20/07/10

Notícias da Guiné XI



Cá estamos para dar um “olá”, ainda que breve.

Pela primeira vez fiquei mais de um mês sem acesso à net e, portanto, não foi possível enviar as reflexões que tanto prazer me dão a escrever e que me permitem ir estando em contacto com o mundo desse lado. As tempestades também não têm ajudado… até as linhas telefónicas andam difíceis!

Também é verdade que o mês de Junho, ao contrário das minhas expectativas, foi muito complicado a nível de trabalho e o Julho está a ser de doidos, completamente!

Gostei de ver, no entanto, que algumas pessoas sentiram a nossa falta – vários foram os mails e até sms a perguntar se estava tudo bem, se estávamos vivos e de boa saúde. Afinal… ainda não fomos totalmente esquecidos (nem pelos alunos de há tantos anos… na altura em que a História era outra, não é Pedro?!) ! :D

Pois, aqui vão, em estilo telegráfico, alguns comentários sobre o que temos andado por cá a fazer. Não é o meu estilo preferido, mas é o possível nesta altura:

- em primeiro lugar, e para quem não sabe, o mês de Junho entrou com a necessidade de tomada de decisão sobre o futuro, e nós decidimos ficar mais um ano. A FEC sabia que eu no próximo ano queria vir para Bissau para eu e o Miguel podermos estar juntos e propôs-me um lugar em Bissau (coordenadora da Comunicação), e eu aceitei. O trabalho parece ser interessante (dar formação a jornalistas, ter um programa numa rádio nacional, organizar as publicações da FEC na GB e tratar da comunicação interna) e é mais um desafio para mim, mais uma novidade!

- o Miguel anda muito contente e realizado no seu trabalho. Depois de uma difícil adaptação à cidade (já estávamos habituados ao “terreno”), à nova instituição, às novas funções e até a ter de viver sem mim (primeiro estranha-se, depois entranha-se!! :D), tudo entrou nos eixos e lá está ele todo feliz num projecto que tem pernas para andar e com o qual se identifica muito. Já foi por três vezes a missões no terreno (e este “terreno” é mesmo muito interior) e voltou sempre com imensas histórias para contar – viagens de canoa fantásticas, tempestades marítimas para enfrentar, viagens no mato bastante superiores a safaris, excursões nas bolanhas (plantações de arroz) com água até ao peito… está um verdadeiro “todo o terreno”, o meu marido! :D

- depois da decisão de ficarmos por cá mais um ano (ou dois), decidimos comprar um jipe e lá encontramos um Mitsubishi Pagero muito fixe em quinta ou sexta mão. Tivemos um mês inicial muito complicado (avariava em todas as viagens), mas agora já entrou na linha e tem sido uma grande ajuda, sobretudo para eu e o Miguel nos podermos visitar mutuamente. Isso também nos tem permitido viajar um pouco mais e para festejarmos os cinco anos juntos fomos fazer um fim-de-semana ao Saltinho, um lugar paradisíaco junto ao rio. Foi mesmo muito bom e deu para cortar um pouco com o imenso trabalho do dia-a-dia!

- Junho trouxe também o S. João, e nós, como bons portuenses que somos, decidimos festejá-lo em Canchungo e foi uma bela festa! A Catarina, vimaranense que foi substituir o Miguel em canchungo, deu o grande incentivo e todos alinhamos – o Cirilo aderiu logo (festa é festa), o Miguel veio de Bissau e convidamos alguns amigos espanhóis (de outra ONG) e guineenses. Foi um verdadeiro S. João! Não faltou o peixe grelhado (bentana, não sardinha… mas quem não tem cão, caça com gato!), o pimento, a saladinha… Foi uma noite animada com muita música multicultural!

- agora também é tempo de balanço e foi fantástico ver que, para além do trabalho que nos trouxe cá, e que foi bem cumprido, também conseguimos fazer outras coisas com a ajuda dos nossos amigos em Portugal. Há duas em particular que nos fazem ficar orgulhosos – os apadrinhamentos e a construção da escola de Bidjope.

Quanto aos apadrinhamentos, conseguimos apadrinhar 20 crianças durante este ano lectivo. Nada mau para um projecto que nem divulgação teve, que caminhou apenas pelo “passa palavra” da nossa família. Foi um belo trabalho que permitiu que algumas crianças que não têm possibilidade de estudar conseguissem manter-se na escola. Para o ano veremos o que mais se poderá fazer!

Quanto a Bidjope, também foi impressionante a adesão das pessoas ao apelo que fizemos. Por grande incentivo de amigos e de alguns ex-alunos organizou-se a associação “A Ponte Amiga”, que tem feito esforços para que Bidjope seja uma realidade. Durante o ano conseguiu-se dinheiro para a construção, a comunidade levantou o edifício, nós compramos os materiais, a escola foi tapada antes das chuvas começarem para não cair, e neste momento só falta cimentar e rebocar a escola.

A comunidade parou os trabalhos porque esta é a época da lavra, e se não lavrarem não há nada para comer no próximo ano… Mas já prometeram recomeçá-los para que, em finais de Setembro, inícios de Outubro, se possa inaugurar a escola com a abertura do ano lectivo. Também nessa altura distribuiremos os materiais escolares que nos chegaram pelo correio. À porta da escola será colocada uma placa com os dizeres «Escola construída com o apoio da associação “A Ponte Amiga” e da FEC» e…. grande surpresa… será chamada de “A Ponte Amiga”! Não é bonito? Já foi aberto um concurso na Associação para que se escolha um logótipo para a escola, porque aqui a DRE quer estampar t-shirts para o uniforme!

Onde isto já vai… é bom ver o que Deus faz com os nossos pequenos passos!

E isto ainda não acabou… Apesar de saber poucas coisas (querem surpreender-me!) sobre o assunto, parece-me que haverá um sarau no dia 23 de Julho para angariação de fundos para uma biblioteca da região de Cacheu! Esta Associação tem pernas para andar e não parece querer ficar parada! Fico muito orgulhosa!

- num dia desta semana o Miguel estava num café da cidade de Bissau e o vendedor de jornais vai ter com ele e diz: “ó senhor, compre o jornal que hoje a sua cara aparece lá!”. Foi tão engraçado! Um dia destes o Miguel falou com um jornalista do “Nô Pintcha”, o principal e mais antigo jornal guineense (cujo título significa “nós avançamos”), o primeiro após a independência, sobre a sua reportagem sobre a emigração clandestina, escrita no ano passado na viagem à Mauritânia, e ele mostrou-se muito interessado no assunto. O Miguel enviou-lhe o texto e este foi publicado (a primeira parte) na edição desta semana! As voltas que o mundo dá… quem diria… nessa altura nem sabíamos que viríamos para a Guiné… quase um ano depois, o artigo sai num jornal africano, bem perto do local que lhe serviu de inspiração e onde foi redigido! Mais um motivo de orgulho para nós!

- o mês de Julho trouxe também as primeiras despedidas… três das nossas amigas e colegas da FEC regressaram esta sexta a Portugal. Tinham fortes motivos pessoais e já tinham terminado a sua parte do projecto. Só as Supervisoras terão trabalho até às 00h00 de dia 31 de Julho! Pobres de nós! :D Mas a verdade é que é muito triste ver partir pessoas que partilharam as nossas vidas, sabendo que agora seguiremos vidas separadas… parece coisa de adolescente, mas as despedidas custam sempre! Sobretudo porque conseguimos criar um clima muito forte entre nós, constituindo não só uma equipa boa tecnicamente, mas também muito boa em termos humanos, muito comprometida com o projecto e muito preocupada com as pessoas que estão à volta. Não vai ser fácil repetir uma equipa assim!

E bem, esta semana teremos o meu 31º aniversário e terei alguma tristeza por não poder partilhá-lo com a família e os amigos… Como é possível não ter um pic-nic no meu aniversário? :D

Devo passá-lo a trabalhar, porque ainda tenho milhares de coisas para fazer até conseguir encerrar a minha parte do projecto – as sessões de formação (quinze dias seguidos com cerca de 100 professores em formação, em quatro cidades diferentes…que eu tive de coordenar e visitar diariamente) só terminaram na sexta-feira e agora falta toda a parte administrativa e burocrática de tudo isso. Para além das 180 provas (português e pedagogia) para rever e introduzir no computador!

Em Agosto, passarei a primeira semana ainda em Canchungo, onde me voluntariei a dar uma semana de formação aos professores da missão católica (a mesma onde apadrinhamos os alunos), e depois virei para Bissau de vez. Estarei duas semanas de férias metida em casa (as chuvas estão a deixar tudo impossível de transitar!) e no dia 22 de Agosto viajarei para Portugal, para uns dias de férias. Depois da formação em Lisboa, nas primeiras semanas de Setembro, regressarei a casa, a Bissau, para mais um ano na Guiné. O Miguel ficará por cá pois não pode gozar férias agora. Veremos quando poderá tirar uns dias para ir à terra. As saudades do Porto apertam muito!

Bem, até breve… esperemos que apreciem as fotografias que enviamos!

Passa sabi!

Festas

07/06/10

Bidjope

Gâmbia

Notícias da Guiné X



Amigos, cá estamos nós ao fim de algum tempo, ausência desculpada (espero eu!) pelas fotos colocadas há quinze dias atrás, mesmo que sem o devido texto a acompanhar.
As desculpas são as mesmas de sempre e mais uma – trabalho, trabalho, trabalho… e uma semana de férias na Gâmbia! :D
O mês de Maio foi um mês muito cheio de trabalho e de novas sensações.
Foi o mês da última visita às escolas para observação das aulas dos professores, motivo de orgulho ao ver alguns avanços e empenhos, motivo de desespero por ver que, tantas vezes, nada mudou. O normal ao fim de um ano de trabalho, certo?
Para mim, foi também a oportunidade, mais uma, de visitar o país real, as tabancas do interior, onde não passa um carro durante o ano inteiro à excepção das nossas visitas, onde o conceito de “safari” se torna banal pela beleza quotidiana, pelo grandioso sentido da imensidão e do divino que nos tomam o ser. Pela última vez visito as escolas e recebo mangas e caju em troca. Tudo é dado nestes pequenos presentes.
Foi o mês da Feira do Livro no Liceu de Canchungo. Uma verdadeira surpresa para todos! Penso que ninguém esperava o que aconteceu. O director do liceu tinha planeado, ainda com o Miguel, uma feira do livro na semana da celebração do Hô Chi Minh, rebelde vietnamita que deu o nome ao liceu e que se comemora no dia 19 de Maio. Todos pensamos curto e colocamos à venda apenas alguns livros oferecidos pela Embaixada de Portugal e de uma editora guineense. A afluência foi tão grande que tivemos de procurar novas soluções e colocamos à venda manuais escolares e outros materiais que existiam no contentor da FEC. Claro que vendemos tudo a preços muito simbólicos (cerca de 75 cêntimos cada livro), sobretudo para evitar a “caridadezinha” em que tudo é dado, e a verdade é que se venderam 374 livros! Foi um sucesso espantoso que ninguém previa! No próximo ano já decidimos fazer algo mais bem planeado, com livros mais adaptados à realidade e que possa melhor satisfazer a procura. Mas, ainda assim, não deixou de ser surpreendente a vontade de livros que sentimos naqueles dias. Foram dias de loucura, a nível de trabalho, mas valeu a pena, não há dúvida disso.
A nível institucional foi um momento de grande promoção da FEC pois aparecemos na comunicação social e o liceu mostrou uma gratidão enorme por esta nossa iniciativa. Foi gratificante!
Foi ainda o mês da distribuição de manuais escolares da primeira classe (os únicos que se encontram à venda na Editora Escolar) às dezasseis escolas do projecto deste ano, para além da entrega dos manuais dos professores aos professores das quatro classes. Foi uma trabalheira contar e separar mais de 900 kits de manuais, mas é sempre uma alegria chegar às escolas e ver a forma como são recebidos. Nem consigo imaginar o sistema de ensino português sem manuais…
E, para terminar, foi ainda o grande mês das obras da escola de Bidjope! No dia 18 visitei a escola e foi espantoso ver as paredes todas levantadas, a comunidade toda envolvida em torno do fabrico dos tijolos de adobe e da construção das paredes, já bem visíveis. Aproveitei e fiz uma reportagem completa do mesmo – apresentei todos os cantos da obra, entrevistei o director da escola, o inspector do sector, alguns alunos que estavam presentes…Foi uma grande alegria ver o nascimento de uma obra que todos sonhamos e auxiliamos. Na semana passada, com o dinheiro enviado, a FEC comprou o zinco, os pregos e o cimento necessários e transportou todos os materiais para Bidjope, onde as obras terão de continuar a bom ritmo, uma vez que as chuvas já ameaçaram por três vezes. Em breve não nos largarão de vez, e quem não preparou a sua casa, já não terá oportunidade de o fazer até Novembro.
Em Portugal soube de histórias lindíssimas sobre esta campanha de Bidjope e tenho pena que as pessoas não as coloquem por escrito para poderem ser divulgadas aqui neste mesmo espaço. Uma que muito me marcou foi a de um amigo que tem uma espécie de ATL e que sensibilizou as crianças e os pais para esta construção de uma escola na Guiné. De uma coisa de nada ele conseguiu mobilizar uma série de pessoas para a solidariedade. E sei que isso aconteceu com diversas pessoas, às quais agradeço. Agradeço eu e agradece o mundo, pois não são apenas as crianças de Bidjope que beneficiarão com a nova escola, serão também as crianças que participaram e que se poderão tornar adultos mais atentos ao mundo que os rodeia, ao mundo que precisa deles e que está mesmo debaixo do seu nariz. Estas campanhas nunca ajudam só quem recebe, ajudam também aquele que participa activamente.
Por aqui o calor está insuportável. É ler todas as descrições do tempo na Guiné e acreditar que tudo é pouco para o que se sente na verdade – é uma moleza indescritível! Só apetece ficar deitado na cama, com uma ventoinha próxima (ai de nós que não temos electricidade durante a tarde!) numa completa languidez, o que é impossível devido ao imenso trabalho. Sempre que não vou a conduzir adormeço todo o tempo das viagens, tal é o cansaço provocado pela temperatura. O suor escorre por todo o corpo e nem o banho consegue apagar a sensação de calor que todo o corpo emana. O nosso próprio cheiro se altera e é de uma intensidade brutal. Tudo tem um cheiro intensíssimo. As breves visitas da chuva, três noites até agora, deixam a promessa de uma lufada de ar fresco e o cheiro a terra molhada que inunda as casas. Deixam também antever o estado das estradas de terra batida, completamente intransitáveis logo ao fim de uma noite de chuva. Não queremos imaginar como estarão ao fim de cinco meses! Em alguns locais que ficam inacessíveis já começaram as compras de provisões para toda a época das chuvas. Felizmente isso não acontece em nenhum dos nossos locais de trabalho - Canchungo, Bafatá e Mansoa -, já dotados de estrada de alcatrão até Bissau.
A apanha da castanha de caju está a chegar ao fim, mas ainda há um cheiro a caju em todas as estradas ladeadas por esse fruto, tão doce e colorido (que continua sem me conseguir convencer!). As mangueiras estão todas carregadas e por todo o lado se vêem mangas caídas no chão. Tem sido uma parte importante da minha alimentação. Como cerca de quatro mangas por dia, daquelas enormes (sim, já sei o que são “mangas de faca”, Roberto!) e com um sabor fantástico. Já para não falar dos sumos e doces que se fazem (e as irmãs nos oferecem!). Tudo serve para aproveitar este dom da natureza. Também ele há-de acabar e dar lugar a outras frutas. Fico sempre surpreendida com esta sazonalidade dos produtos, já esquecida no nosso mundo, onde há de tudo, durante todo o ano.
Na semana passada, e porque como trabalho em alguns fins-de-semana tenho direito a gozar esses dias, meti cinco dias de compensações e fui viajar com duas colegas. Andamos a pensar onde ir e chegamos à Gâmbia, como destino. Para o sul e o leste não é possível ir devido aos problemas na Guiné-Conakry; para o oeste… é mar, só se fossemos para os Bijagós, mas todas já conhecíamos algumas ilhas. Sobrou-nos o norte. O Senegal e a Gâmbia. Como o Senegal é já ali, já era conhecido por uma das colegas, optamos pela Gâmbia, e optamos muito bem!
Passamos dois dias em viagem, um à ida e outro no regresso, e três dias a aproveitar o país.
A Gâmbia é o mais pequeno país africano (sete vezes menor que Portugal!) e é rodeado pelo Senegal por todos os lados, excepto pelo lado ocidental, onde faz fronteira com o mar. O seu território estende-se para o interior nas margens do rio Gâmbia. Começou por ser um território de ocupação portuguesa, onde chegaram em 1444 sobretudo para a compra de escravos, mas vendido à coroa inglesa, no século XVI, tendo sendo um território sempre disputado pelos franceses. A Gâmbia é independente desde 1965 e tem como língua oficial o inglês. Partilha com a Guiné o facto de ter uma língua oficial diferente numa região toda ela francófona.
As viagens, por terra e sem transporte próprio, como foi o nosso caso, são uma aventura… Partimos às 10.30 de Bissau e chegamos a Bakau às 19h! Apanhamos 7 places em Bissau até Ziguinchor, já no Senegal; dali partimos noutra para Seleti, fronteira com a Gâmbia; daí para Brikama, oeste do país; e daí para Serekunda. Finalmente apanhamos um táxi para Bakau, cidadezinha à beira da praia, onde ficamos. Tudo isto a passar em inúmeros controlos de passaporte, de entrada e saída do país (em poucas horas cruzamos três países!), inspecção das mochilas, etc. Que dias!
No primeiro dia em Bakau decidimos ir de manhã à praia (afinal, somos iguais aos turistas de todo o mundo! E a Gâmbia tem praias bem bonitas!) e à tarde visitar o parque natural de Tanji, onde, para além de um passeio de três horas num percurso que incluía mata e beira da praia, pudemos observar os pássaros. A Gâmbia é conhecida pelo número incontável de espécies que possui. Devo confessar que não sou grande amante de animais em geral, mas o passeio foi bonito e lá andamos nós de binóculos atrás de não sei bem o quê! :D
No segundo dia fizemos uma viagem de barco pelo rio Gâmbia. Foi, para mim, o dia mais enriquecedor. Saímos do porto de Banjul, a capital, e partimos para leste, para o interior do país, subindo o rio. Foram três horas até alcançar os locais a visitar – Albreda/Jufureh e a James Island, Património Mundial da Humanidade. Os dois primeiros locais são pequenas localidades na costa, conhecidas por terem sido um grande entreposto de comércio de escravos (iniciado pelos portugueses e continuado, como já referi, por ingleses e franceses), onde se pode visitar o Museu da Escravatura e alguns pequenos monumentos construídos em celebração do fim da mesma. Realiza-se aqui um festival bianual contra a escravatura, mundialmente famoso. Muitos lembrar-se-ão da série dos anos 80, “Raízes”, sobre o escravo Kunta Kinte, baseada no livro de Alex Haley, afro-americano descendente do herói do livro. Eu não me lembrava (os meus interesses nos anos 80 ainda eram outros!!) mas o Miguel lembra-se muito bem. E Jufureh é a tabanca de Kunta Kinte, de onde ele foi retirado e vendido para a América. A James Island, Património Mundial da Humanidade, ilha a cerca de 4 kms das tabancas da costa, é o local onde os escravos eram guardados para não fugirem. Conta a história que a quem se conseguisse libertar do forte e chegar a Albreda seria dada a liberdade, mas conta-se também que nunca ninguém conseguiu esse feito. A ilha está a sofrer um aceleradíssimo processo de erosão, também pela subida do nível das águas do mar, e já não se vê muito do antigo forte, em grande estado de ruína. No entanto, a ilha tem qualquer coisa de mágico – talvez pela sua pequenez, talvez pela nebulosidade com que nos recebe, talvez pelos inúmeros embondeiros que cresceram e que parecem, eles próprios, serem os únicos suportes da ilha, meia suspensa, pelas suas enormes raízes. É um lugar bonito e com um espírito próprio.
O regresso a Banjul não foi fácil devido às marés (apesar de ser rio, tem uma enorme extensão de água salgada com influência do mar e das marés) e apanhamos um pouco de tempestade. Também é normal e dá um pouco mais de cor à aventura. :D
No terceiro dia visitamos Brikama, algumas tabancas (queríamos comparar a vida real da Guiné com a vida real da Gâmbia) e o mercado de Serekunda. Foi um dia bem passado! Aliás, foram uns dias bem passados!
O maior problema da Gâmbia é o seu tipo de turismo – muitas mulheres de meia idade, europeias, vêm aqui à procura de gambianos jeitosos que passem consigo as suas férias e sejam seus “namorados” por um período mais ou menos longo. No fundo é um país de grande prostituição masculina, o que faz com que as mulheres sejam abordadas com muita insistência nas ruas, o que nos fez alguma confusão. Chegamos a estar a jantar e estarmos rodeadas de casais deste tipo – mulheres brancas de meia idade e gambianos jovens – e nós as únicas três jovens, brancas e sem gambianos à mesa! Que estranho!
Lá regressamos nós à vida real, em Bissau, eu já cheia de saudades do maridinho! :D
No regresso, nada de novo – Bissau inteira está preocupada com a situação da Guiné. A instabilidade mantém-se; o primeiro-ministro está fora do país há algum tempo (com medo de ser morto, dizem por aqui); ainda não há chefe de estado-maior das forças armadas (CEMFA) e o anterior continua preso pelos rebeldes do 1 de Abril; o vice-CEMFA, um dos rebeldes, quase que se auto-proclamou como novo CEMFA e anda por aí livremente a querer mandar no país; o Bubo, o outro rebelde, está a juntar os seus apoios militares e é acusado de ser a maior personalidade do narcotráfico na Guiné… Nada está, de facto, resolvido, e a comunidade internacional diz que se não houver inquérito e justiça para com os rebeldes, vai lançar sanções contra a Guiné, podendo mesmo passar pela diminuição drástica do apoio e pelo encerramento e debandada das delegações no território… E estamos nós fritos outra vez! É incrível e revoltante como uns poucos, por questões de poder, podem fazer mal e ditar os destinos de tantos, de um país inteiro! Veremos como vai isto acabar, mas o clima é tenso e parece sempre que em breve acontecerá qualquer coisa. Como se pode viver assim? Vamos aprendendo, todos os dias!
De resto, tudo normal! Como dizem os próprios guineenses, habituados já a esta “normalidade”.
O mês de Junho é quase de recta final – visita às poucas escolas que faltam, redacção de centenas de relatórios, inserção de muitos dados, preparação das formações de Junho e das dezasseis sessões intensivas de Julho… Vai ser demasiado burocrático para meu gosto mas… também é um trabalho necessário! O Miguel continua por Bissau e o trabalho corre-lhe bem. É tudo novo e pressupõe uma nova adaptação. Ressentimo-nos, reconhecemos, da distância entre Bissau e Canchungo, antes tão habituados estávamos a partilhar 24 horas por dia. Mas as visitas mútuas ajudam a aliviar as saudades e eu venho (ou ele vai) todos os fins-de-semana, tornando-os prolongados com os dias de compensação (muitos) que ainda me restam gozar.
E bem, despedimo-nos, mais uma vez, com um abraço apertado. Vão mandando notícias, que é bom saber o que se vai passando por aí.
Até à próxima e “passa sabi” (fiquem bem!)

01/05/10

Os diferentes conceitos de casa...

Portugal, apesar de deixado há apenas duas semanas parece estar já tão longe…
Gosto sempre de dizer que não consigo ver estas duas minhas vidas numa mesma linha recta mas sim em duas linhas paralelas, em dois tempos e espaços diferentes, em duas dimensões distintas. Penso que não é possível levantar voo em Lisboa e aterrar em Bissau, sem sofrer um choque que vai muito para além de tempos e espaços. Não quer dizer que se não goste, é apenas a constatação de um facto!

Estou no jardim da nossa casa em Bissau, um calor magnífico, árvores e flores bonitas, uma mesa de esplanada… luxos a que eu não estava habituada, mas que me surgem, ao fim-de-semana, como uma bênção para o corpo e para a alma. A água corre da torneira e a luz, apesar de intermitente, permite-nos ter iluminação, carregar telemóveis e computadores e ter um frigorífico eléctrico. Mas o melhor é mesmo o estar com o Miguel.

Volto atrás. Os dias passados em Portugal foram óptimos para sentir o calor da família, dos amigos e de todos os outros por quem fomos passando e que, mesmo sem sentirmos muito, fomos marcando de uma forma ou de outra. Apesar do sentimento de cansaço por não podermos parar um minuto entre as visitas, os lanches e jantares, é uma riqueza apercebermo-nos do quanto temos à nossa espera no outro canto do mundo.

Estranho, nunca tinha ido de férias a Portugal!

Apesar de uma ou outra discussão mais intensa, normal porque estas já são, de facto, as “nossas causas”, não foi difícil sentir-me compreendida. Sinto que o que não é fácil, é explicar o que de facto vivemos e sentimos, se vive e se sente por aqui. Há experiências que não se descrevem… talvez todas as experiências muito marcantes e muito interiores não se possam descrever. Por isso gostava que viessem e vissem, e tocassem, e ouvissem, e experimentassem e sentissem. É algo muito nosso que, por mais esforço que façamos, não se consegue contar.
Foram dias muito felizes, entre abraços, perguntas e novidades mútuas. Foram dias felizes e agradeço-vos por isso.

O Miguel voltou mais cedo, como sabem, devido aos novos compromissos profissionais, e foi quase directamente para as Ilhas, onde a Tiniguena tem muitos projectos e ele foi inteirar-se da realidade. Foi de canoa, apanhou tempestade no mar e chegou todo encharcado depois da canoa meter água por todos os lados (porque é que estas coisas emocionantes só acontecem a ele, que não gosta nada destas coisas, e não a mim, que iria ficar toda emocionada???)… Os dias lá foram magníficos, segundo o que ele conta. Uma vivência muito perto das populações, a comer mangas e cajus de árvores que, de tão carregadas, deixam cair os seus frutos, a participar em cerimónias tradicionais, etc. Está todo contente com as suas novas funções.

Quem sentiu muito a diferença fui eu. Como eu já dizia, aterrar em Bissau é sempre um murro no estômago. Dormir numa casa, alugada por nós, mas a qual nunca tinha visto, que ainda não me é nada. Volto a Canchungo, a minha CASA, mas também essa está mudada, sem a presença sorridente do Miguel a iluminar os cantos da casa, a fazer parecer pouco importante a falta de água, a falta da luz… Que pieguice, bem o sei, mas confesso que me custou aquela primeira semana por cá. Para mais, o trabalho todo atrasado, formação para dar no sábado e todo o material para preparar… o Miguel sem rede para me ligar, e quando o conseguia era sempre aos soluços, mal dava para falar… E fizemos quatro anos de casamento no meio desta confusão! :D

O que valeu foi a presença do Cirilo e da Catarina que, como família que somos, de tudo fizeram para que eu não me sentisse triste. Até foram "jantar fora" comigo no dia do aniversário! :D

Na segunda feira, 26, ele chegou das Ilhas, voou para Canchungo, e tudo voltou ao normal! Cheguei, chegamos (sim, porque ele tinha sentido o mesmo que eu), finalmente, a CASA!

Por aqui… tudo normal, como na Guiné! Ou seja, a instabilidade política mantém-se. Fala-se de nova confusão para breve – ainda não há chefe de estado-maior das forças armadas (cemfa), o mais provável é que seja um dos revoltosos, o que a comunidade internacional não aceita. Mas é quem detém o poder dos militares. Fala-se num provável atentado ao primeiro-ministro. A verdade é que quando o presidente viajou, com o vice-cemfa, na semana passada, numa visita oficial à Líbia, o primeiro-ministro também viajou para a Europa, de urgência, dizem que percebendo que seria a altura ideal para sofrer um atentado. No fim-de-semana passado houve qualquer coisa. Ninguém sabe bem o quê, mas esteve para acontecer algo, pois todos falam nisso. E ninguém sabe nada! É fantástico! E nós temos de aprender a viver desta forma, é a única solução. Portanto, não se admirem se a Guiné-Bissau aparecer nas notícias, em breve, por motivos menos agradáveis!

O calor chegou a valer… Dificulta o adormecer e põe-nos o suor a correr no corpo, que fica com um cheiro intensíssimo. Tudo tem um cheiro intenso nesta terra!
De vez em quando já se sente um vento a querer puxar a chuva, eu já a sinto no ar, mas todos me gozam, dizendo que ela só virá no final do mês. O calor faz-me desejar que chegue mais cedo, para refrescar casas e corpos! Sei que depois a Guiné ficará intransitável e todos ficaremos mais ou menos reféns do lugar onde estamos mas a lembrança da chuva a bater nos telhados, do cheiro que a terra liberta, do coaxar dos sapos toda a noite, do banho tomado à chuva … Uhmmm! Que venha, que venha depressa!...

Com esta época quente veio também a época da manga, do caju e do ananás. É fantástico o que se aprende aqui sobre a natureza. Como não temos os “frescos do Pingo Doce”, acabamos por perceber as “épocas” das coisas, os ciclos. A paisagem ficou linda, linda. Como grande parte das árvores são mangueiras e cajueiros, é lindíssimo viajar e ver as árvores pintadas com o amarelo e laranja das mangas, penduradas de forma mágica, e o vermelho vivo dos cajus, quase lembrando cerejas. Pela primeira vez comi caju. Em Moçambique já tinha aprendido (ai esta ignorância!) que o caju que nós conhecemos em Portugal não é exactamente o fruto do cajueiro. O cajueiro tem um fruto vermelho vivo, muito doce e com uma textura estranha, que é o caju (a mim faz-me lembrar o diospiro), e que, na ponta, tem um rabinho, como se fosse um feijão. Aí dentro é que está a castanha de caju, muito apreciada na Europa, e que, depois de torrada, se come, que é o que nós conhecemos como caju. Como eu dizia, já tinha aprendido isto em Moçambique, mas nunca tinha tido a oportunidade de comer o caju, que, a dizer a verdade, ainda não me convenceu muito mas… vou dar-lhe uma segunda oportunidade!

Para a Guiné, esta é uma época única no ano, visto que o caju representa cerca de 90% da exportação do país, o que significa que é quase a única altura em que a maioria das pessoas das tabancas sabe o que é o dinheiro, é a única cultura de renda para a GB. Explico-me. Nesta época, o governo decreta a abertura da campanha do caju, e o sistema já está montado com uma série de empresas a comprar o produto em bruto e a fixar o preço do quilo (que este ano está em cerca de 200francos cfa – 30 cêntimos). Assim, todos estão a proceder à apanha do caju de forma a poder receber algum dinheiro, para alguns, o único que recebem todo o ano.

Este facto tem uma grande implicação nas escolas já que muitos pais não deixam os filhos irem às escolas durante o período da campanha de caju para que estes possam ir ajudar na sua apanha, o que faz com que muitas escolas tenham uma taxa de absentismo elevadíssima nesta altura e que os alunos percam cerca de um mês de aulas!
Algumas escolas, para poderem ter algum dinheiro para as suas despesas, oferecem as suas turmas para irem apanhar caju em grandes propriedades, a que chamam o dia de “trabalho produtivo”. Iniciativas que a nós nos parecem bizarras, mas que parecem fazer todo o sentido neste tipo de economia em que as escolas estão por sua conta, já que o estado não consegue dar-lhes nenhum tipo de financiamento.

Um dia destes queixava-me, em casa, que não encontrava caju à venda no mercado, o que não me parecia fazer sentido com tanto que eu via a cair pelas estradas das tabancas. O Almeida, rindo-se, disse-me “é exactamente por isso, por toda a gente ter tanto caju que não vale a pena pôr à venda que ninguém compraria”. Boa questão! Nunca tinha pensado assim. “E para os brancos, que não têm ponta (terreno de cultivo), porque não vendem?” “Porque em Canchungo não há brancos que justifiquem!” Ok, percebi! Mas ele prometeu-me que me iria trazer muitos quando fosse à ponta dele.

Ao nível do trabalho, para além do imenso trabalho burocrático (relatórios de observação de aulas, introduzir valores de provas em grelhas estatísticas, etc) e da preparação das sessões de formação com os meus formadores, continuo a segunda ronda da visita às escolas para observar as aulas. Esta semana estive numa escola que parecia o paraíso – feita de traves e folha de palmeiras, no meio dos cajueiros e mangueiras, com o som do vento a agitar as árvores, o cantar das aves e vozes de tantos animais (vacas, cabras, porcos…)… mesmo, mesmo paradisíaco! O pior foi mesmo o facto de ter de me sentar num pau com cerca de 10 centímetros de largura onde, como podem imaginar, eu não cabia nem metade, durante cerca de duas horas. Se já para os miúdos não é confortável, imaginem para mim, que ocupo um espaço considerável! O melhor momento foi mesmo quando todos se levantaram para cantar o hino nacional e eu pude levantar-me e descansar um pouco. :D O mundo não é mesmo perfeito, mas acho que se me tivessem deixado sentar no chão, eu me teria sentido bem perto da perfeição naquele momento!

E termino com um acontecimento muito, mas muito caricato: no sábado passado eu tive formação toda a manhã, das 8 às 14h. Cheguei a casa, comi qualquer coisa e fui deitar-me na cama, deixando a porta da casa aberta, apenas fechada no mosquiteiro, pois esperava que os meus formadores regressassem todos das respectivas formações para me trazerem o material, fazermos contas, etc, e me chamassem da porta de entrada. Não imaginam o susto que apanhei quando acordei com uma pequena chimpanzé a pular em cima da minha cama, na qual eu estava deitada a dormir! Pois… é mesmo verdade! Acordei com a Helga a saltar para cima da minha cama!
A Helga é uma chimpanzé que uns chineses “adoptaram” mas que, como fazia muitas asneiras e era muito traquina, a ofereceram ao seu funcionário guineense, que a deixa vaguear um pouco pelas ruas de Canchungo. Já não é a primeira vez que ela tenta entrar em nossa casa. Já de outras vezes eu ouvi mexer no trinco do mosquiteiro e vindo ver quem era dou de caras com a Helga. Desta vez ela conseguiu forçar mesmo o trinco e entrar em casa indo directa ao meu quarto, que estava com a porta aberta para ouvir os formadores a chamarem por mim. Subindo para a cama, desata aos pulos, que me acordaram, dando eu um pulo para fora da cama. Fiquei em pânico! Penso que todos conhecem a minha relação difícil com os animais… não gosto de muitas intimidades! Pois tive de a ver a saltar em cima da minha cama, qual criança animada, da cama para a cadeira, da cadeira para a cabeceira da cama, da cabeceira atirar-se, com uma cambalhota no ar, para a cama, novamente, pendurar-se nos batiks que eu tenho colados na parede, fazendo com que se descolassem (depois de tanto trabalho!), brincasse com as almofadas… Bem, depois de um momento de pânico, veio aquele em que olhei para todo o lado à procura da câmara para os “apanhados” ou de alguém que me estivesse a pregar uma partida… e depois o momento de me desatar a rir à gargalhada e me divertir com as piruetas da macaquita! Comecei, depois de me recompor, o processo de a devolver à rua. Foi lento e árduo! Ela não queria ir de tão divertida que estava a saltar em cima da minha cama… ria-se como uma criança! Lá comecei a tentar empurrá-la com a minha mão para que ela saísse do quarto, mas ela devia perceber um novo impulso pois dava mais uma cambalhota e não saía. Começo a falar então com ela, perguntando-lhe se ela falava português ou crioulo! :D Acho que endoideci um bocado, reconheço, mas como ela não queria ir a mal, pensei que conversando me safasse! Fui à rua procurar alguém que me ajudasse mas como era a hora de maior calor, não se via ninguém. Voltei para dentro e com uma atitude de perseguição cerrada, muitos argumentos em crioulo, e a atracção de uma banana (genial, hein?), lá consegui que ela deixasse o meu quarto indo enfiar-se no escritório. Bem, pelo menos estava mais perto da porta. Novas tentativas de a pôr na rua mas ela novamente atraída pelo balanço das cortinas do escritório, onde se pendurou, por subir e descer a pasta da minha guitarra… entretanto veio alguém que me ajudou a tentar tirá-la e conseguimos trazê-la para a entrada da casa, mas ela agarrou-se a uma perna da mesa da entrada e começou a chorar… incrível, parecia mesmo uma criança! Quase me comovi! O rapaz também e foi-se embora, dizendo que ela não queria mesmo deixar a casa! Fiquei possessa… não queria ela mas queria eu que ela saísse! Olha que esta! Usei novamente a técnica da banana e consegui que ela saísse para o terraço, finalmente! Mas não é que ela ficou o resto da tarde à porta de casa a choramingar, com o dedo na boca? Poça! Que coisa me havia de acontecer! E a cena só acabou por volta das cinco da tarde quando chegou um dos meus formadores e vendo-a ali a carpir a levou ao dono, ralhando com ele por não a manter na linha! Pobre Helga! E pobre de mim que tive de deitar toda a roupa que tinha no quarto para lavar e na qual ela se andou a esfregar e a pendurar. Ainda hoje acho que o meu quarto ficou com cheiro a chimpanzé, mas deve ser sugestão! :D

E bem, até ao meu regresso a Bissau!
Abraço e fiquem bem!

13/04/10

Uma crónica esperançosa

Li no jornal i, no dia 6 de Abril, uma crónica escrita por Jaime Nogueira Pinto que, ao contrário de muitas que fui lendo, apontam o famoso episódio do "Golpe de Estado" na Guiné e de tudo o que o envolveu não como mais uma razão para crucificar um país já de si tão sofrido, mas como um "exemplo para África".
Fiquei feliz por ver que alguém consegue ver o outro lado, aquele para além do óbvio, para além da acusação e julgamento fácil, normalmente feitos por ignorância.
Deu-me mais vontade para voltar, com esperança, para participar na luta, silenciosa, travada diariamente naquele país.
Espero que apreciem a leitura tanto quanto eu e que este texto nos faça ver aquela luz ao fundo do túnel, aquela que sempre existe se observarmos bem.
Abraço,
"Um exemplo para África"
Na Guiné-Bissau, dois líderes eleitos pelo povo resistiram à chantagem das armas. Um exemplo para o resto de África, vindo da área lusófona.
Em finais de Março de 2010 as notícias sobre a Guiné-Bissau eram esperançosas: o país chegara a uma situação política estável, com um presidente da República e um primeiro-ministro eleitos com maiorias substanciais em eleições livres, justas e aceites por todos.
A política económico-financeira do governo conseguia ir pondo ordem nas contas públicas, pagar os salários em atraso dos funcionários e cumprir o serviço da dívida. O chefe do executivo, Carlos Gomes Júnior, tinha uma equipa capaz e sobrevivera à difícil coabitação com Nino Vieira. Para os militares, onde o grupo dos antigos combatentes balantas persistia como factor de peso, havia um projecto que permitiria reduzir o número de efectivos, passando à disponibilidade os elementos mais velhos mas pagando-lhes as pensões de reforma.
A recente visita a Portugal de Carlos Gomes impressionara muito favoravelmente os interlocutores e animara um grupo de empresários do Norte a investir na Guiné, país que estava nas prioridades de Lisboa. Luís Amado programara uma visita à Guiné-Bissau depois de o presidente Malam Bacai Sanhá ter cá estado.
No entanto, na quinta-feira passada chegam notícias de outro golpe em Bissau, protagonizado pelo n.o 2 das forças armadas, António Injai, o líder da operação punitiva que terminara na morte de Nino. Injai aparecia com Bubo na Tchuto, o ex-chefe da Marinha com alegadas ligações aos narcos que se refugiara na Gâmbia. Juntos tinham detido o PM Carlos Gomes e o CEMGFA, Zamora Induta.
Quando parecia estar iminente novo desastre, duas coisas aconteceram: a primeira foi uma pronta e espontânea reacção popular. A população veio para a rua defender o governo e atacar os golpistas e só retirou quando estes - pelas vozes de Bubo e Injai - ameaçaram matar Carlos Gomes. A segunda foi que o presidente Malam Bacai, com grande coragem e dignidade perante os seus interlocutores armados, se recusou a demitir o primeiro-ministro, solidarizando-se com ele e com o governo. Criticou asperamente a atitude dos golpistas, lembrando-lhes a repulsa e a cólera popular contra eles nas ruas, e conseguiu deles a libertação do PM.
Carlos Gomes mostrou-se um político civil, alguém que não precisa das credenciais de guerrilheiro nem de estar com uma kalash na mão para ser corajoso; mais: que é corajoso com a kalash na mão dos seus inimigos virada contra ele. Só o CEMGFA Zamora Induta continua detido pelos golpistas. Acusam-no de estar a preparar a sua liquidação e dizem agir em "legítima defesa antecipada".
Na Guiné-Bissau, dois líderes eleitos pelo povo resistiram à chantagem das armas. Não podem nem devem ser abandonados neste momento, pois, como demonstraram, representam a derradeira esperança de salvação do seu tão martirizado país. Um exemplo para o resto de África, vindo da área lusófona.

12/04/10

O merecido descanso em Portugal!

Penso que todos devem saber pois já nos devemos ter cruzado em algum meio de comunicação :D Mas conseguimos viajar e estamos a passar uns dias excelentes de férias em Portugal, junto da família e amigos.
O Miguel já está quase de regresso (obrigações de coordenador!) e eu ficarei mais uns dias, não muitos.

Do que mais estamos a gostar? Do chuveiro de água quente!! Viva a modernidade! :D

O que mais nos prende cá? A família, amigos e a cidade do Porto.

Se já temos saudades da Guiné? Sim, a nossa vida, neste momento, já é lá, sem dúvida!


Um abraço e até...

01/04/10

Tudo normal... como na Guiné!

Boa noite, amigos...

Parece coisa do dia das mentiras... bem o desejamos! Mas não, a Guiné voltou a ter problemas devido aos militares!

Só queria dizer que estamos bem, a respeitar o recolher obrigatório no bairro da cooperação portuguesa, em segurança.

Desejamos que o aeroporto não seja tomado e possamos viajar, como tínhamos planeado, para Portugal amanhã à noite. Veremos!

Não se preocupem que estamos bem!

Um abraço e até breve, se Deus quiser!

22/03/10

Notícias da Guiné VIII

I Kuma, amigos?

Este mês estamos bastante em falta, mas a verdade é que temos justificações para isso :D

A primeira é que o trabalho, como eu já contava no último email, está a ser muito forte este mês, e a segunda é que, como não tenho ido a Bissau (há dois fins-de-semana seguidos que não vou), fico sem net para poder enviar o texto e as fotos…

Mas cá estou eu a redimir-me da ausência!

Desde o último post, tantas coisas mudaram…

Primeiro, o Miguel já tem 40 anos! :D Foi um momento engraçado esse. Não é fácil passar os anos longe da família e dos amigos. Para o Miguel, sobretudo, foi difícil não passar o aniversário com a mãe, uma vez que fazem anos no mesmo dia. Foi a primeira vez que não estiveram juntos. No entanto, por aqui, tudo fizemos para que ele não sentisse as saudades… e, claro… o peso dos 40! :D

Ele deve ter tido 3 ou 4 festas, pois todos quisemos festejar – começou com um jantar melhorado, no dia 27, em Canchungo. Eles foram comprar uns camarões do tamanho do prato e ficaram a noite toda a comer apenas camarões, sempre bem regados com uma “geladinha”; no dia 1, já em Bissau, fizemos um jantar com a equipa toda da FEC e mais dois amigos, foi muito animado. Como o próprio Miguel disse no seu “discurso”, quem diria, há sete meses atrás, que iria passar o seu 40º aniversário (um marco importante na vida) com 16 pessoas que nem sequer conhecia nessa altura. Inacreditável! Mas é a realidade, e não é má! Apenas diferente! Depois fomos dançar na noite de Bissau (que também a há, e bem animada!). No dia 2 houve mais festa! A Catarina, uma das nossas amigas da FEC (a que foi comigo a Catió), também fazia anos no dia 2 e preparou um lanchinho, à hora do pôr-do-sol, nas varandas da Pensão Central. Mais festa, mais coisas boas para comer, mais parabéns… :D E há noite ainda tivemos barriga para um bacalhau (o primeiro que comemos desde Outubro!) num restaurante português, com os nossos dois grandes amigos Cirilo e João.

Reparo agora que nunca vos falei na Pensão Central, o que é imperdoável. A Pensão Central é uma pensão gerida por uma senhora cabo-verdiana, a Dona Berta (“avó Berta” para metade dos brancos de Bissau) desde sempre. Ela é uma figura emblemática da cidade e a pensão parece ter sido um local belíssimo, situada mesmo na praça, ao lado da Igreja e dos Ministérios. Hoje, como toda a cidade, parece em ruínas… Para a FEC, e quase todos os brancos cooperantes que passam por cá, o local é uma referência – é onde as pessoas se juntam para contar e ouvir coisas da terra, para comer uma boa comidinha, para encontrar os amigos. Procurem na net e encontrarão muito sobre a Pensão Central e a “Avó Berta” (tem fotos acompanhada de toda a gente importante que por cá passa e já foi agraciada com muitas medalhas de mérito, até pelo governo português). No ano passado a Dona Berta ficou doente e regressou a Portugal, aliás, foi lá que a conheci durante a formação que fiz em Lisboa, na FEC. No entretanto, algumas pessoas que já cá estavam, decidiram pegar na Pensão e andar com aquilo para a frente durante a doença da Dona Berta. E fizeram-no bem, porque a Pensão continua. Já não se alugam quartos para fora, só para amigos e, de preferência por um tempo longo. Está engraçada, parece uma espécie de residência universitária. Eu e o Miguel ficamos por lá quando vamos a Bissau. A Dona Berta regressou no início deste ano, o que é um novo atractivo na Pensão – há sempre imensa gente a visitá-la! O melhor da Pensão são, sem dúvida, as varandas! Delas vê-se toda a avenida principal (como acham que tirei aquelas fotos “aéreas” do carnaval?) da praça do Império até ao rio… E corre um ventinho fresco! Nas noites de calor (ou seja, todas) não há melhor do que as longas conversas na varanda da Dona Berta!

E foram os festejos, prolongados, do aniversário!

No dia 6, regressamos a Bissau porque teve lugar um momento importante para a FEC – a entrega de certificados aos envolvidos no projecto anterior, o +Escola, que terminou em Julho de 2009. Foi um momento tão bonito! Estiveram presentes o Ministro da Educação, o Embaixador de Portugal, e representantes dos principais parceiros da FEC aqui na Guiné – a Igreja Católica, a SNV e a Plan (outras ONGs na área da Educação). A cerimónia teve lugar no Centro Cultural Português e teve várias partes – começou com a apresentação pública dos resultados da avaliação do impacto do projecto da FEC 2001/2007 (é sempre útil podermos medir o que foi feito, o que mudou, o que correu melhor e pior), pela Catarina; depois o coordenador da FEC na Guiné, o Simão, apresentou alguns resultados já apurados sobre o projecto +Escola (ainda está a ser feito o estudo de avaliação do impacto, mais a fundo); em seguida discursaram todas as personalidades presentes, louvando o trabalho da FEC na área da Educação da Guiné (Viva nós! Viva nós :D), a cooperação portuguesa e todos os envolvidos no processo; seguiu-se a entrega dos certificados aos professores e directores que participaram no processo de formação (certificado reconhecido pelo estado para a evolução da carreira docente, ainda em fase de organização) e, por fim, um director da região de Bafatá e outro de Cacheu, discursaram. Foi muito emotivo… acabou tudo em palmas, de pé e com centenas de fotos! Foi um momento bom, daqueles que dão alento para continuar a trabalhar mesmo quando tudo parece negro e sem luz ao fundo do túnel. Mesmo para a equipa foi um momento de união importante até porque todos estávamos a torcer por aqueles que participavam activamente – o Simão, coordenador do projecto, a Ana A., coordenadora da área da Educação, a Catarina, técnica de avaliação, a Ana Poças e o Cirilo, formadores no projecto anterior, que fizeram as honras à casa, com uma apresentação lindíssima (estavam os dois vestidos a rigor) e uma presença muito simpática!

O Miguel e o Cirilo, à custa desta cerimónia, fartaram-se de dar entrevistas à rádio! E aparecemos todos nas notícias da RTP África! Lá estava eu com o meu vestidinho vermelho, o único apresentável que trouxe! Foi uma boa oportunidade para poder sair do armário! :D

E, não fartos de festas, ainda tivemos espírito para, no feriado de dia 8 de Março (sim, porque aqui o dia da mulher é feriado!), nos juntarmos em casa do Simão e da Ana numa tarde de jogos – Trivial, Time’s Up, King… Soube bem!

Só festas… em Bissau é só festas! :D

E não tenho saído de Canchungo desde essa altura. O que não quer dizer que as novidades não aconteçam!

Esta semana fiquei toda contente com uma situação – o inspector Ernesto (inspector do Ministério, a quem nós damos formação de Gestão e Administração Escolar, mas que também trabalha para a FEC ao ser um dos meus formadores de Língua Portuguesa) foi connosco visitar Bidjope por causa da nova escola que estamos a ajudar a construir. Durante a viagem foi o caminho todo a gabar imenso as nossas iniciativas de formação a todos os actores do processo educativos, desde os professores às comunidades, etc, etc, etc. Eu já ia toda contente, é claro!

Mas o que mais me alegrou foi o discurso que ele teve com os elementos da tabanca que estavam presentes. Para além do já famoso discurso sobre “as maravilhas da FEC”, ele contou uma coisa que me surpreendeu e que foi a prova de que nem sonhamos como podemos, de facto, marcar a vida das pessoas. Segundo o discurso dele, há um “Ernesto antes da FEC” e um “Ernesto depois da FEC”, porque tem aprendido muitas coisas connosco (ele que é professor e inspector há mais anos do que aqueles em que eu habito este planeta :D). Deu muitos exemplos sobre aprendizagens que tem tido com o nosso contacto e dois tocaram-me profundamente: um, foi o de dizer que connosco aprendeu a ter criatividade e ânimo, pois o nosso trabalho, ver que alguém de fora está tão empenhado na qualidade do ensino da Guiné, faz o dele valer a pena; o segundo foi o de contar, sem qualquer tipo de problema, que se inspirou nos nossos documentos de formação para elaborar um programa de formação para um concurso que abriu numa ONG à procura de formadores para leccionar no parque de Cacheu conteúdos sobre a vida selvagem, preservação e outras coisas dessas. E ele fê-lo de tal forma correctamente, que foi ele o seleccionado e está a ganhar 40.000 por dia (cerca de 60 euros) nesse projecto. Não é fantástico? Mais do que aprender só conteúdos, ele aprendeu a forma de fazer as coisas, o processo, e isso já lhe serviu para melhorar a sua qualidade de vida. E hoje agradeceu publicamente à FEC, lá na comunidade, porque sem nós não teria aprendido a fazer um bom programa de formação e não teria ganho o concurso.

Fiquei muito orgulhosa do meu formador e do trabalho da FEC! Afinal, apesar da educação ser uma área onde os resultados não se conseguem medir nem sentir rapidamente, porque acontecem ao nível da estrutura de uma sociedade, por vezes temos destas boas surpresas que nos alegram os dias mais cinzentos.

E por falar na escola de Bidjope - já tem os tijolos prontos, já tem as traves da madeira prontas, só falta a decisão final acerca da localização da escola (há dois terrenos possíveis e estamos perante um impasse cultural entre manjacos e balantas… veremos o resultado, que ficou marcado para amanhã, segunda, dia 22!). Também já há dinheiro suficiente e aproveito para agradecer a todos os que fizeram o esforço de nos ajudar neste pequeno sonho! A FEC já se informou dos preços dos materiais, do orçamento e, em breve, adquiriremos todos os materiais necessários à construção da escola, que terá duas salas, um gabinete e um pequeno armazém.

Para a Eunice e a Manela, um obrigada especial por todo o esforço, dedicação e logística! Quando a escola estiver pronta penso mandar fazer uma placa a dizer “Com o apoio da FEC e da Associação A Ponte Amiga”, o que acham? Recordo ainda que quem enviou donativo e precisa de recibo, pode enviar os seus dados (nome completo, NIF e morada) para o meu email que a FEC enviará o recibo para casa.

Quanto à outra actividade que temos levado a cabo, ainda que sem grande publicitação pois para já tem sido quase ainda apenas entre família, a dos apadrinhamentos de crianças no sentido de lhes conseguir pagar a escola na Missão Católica aqui de Canchungo, tem também sido um sucesso – em poucos meses conseguimos apadrinhar 15 crianças, o que é fantástico! O nosso Uyé tem ido ao Jardim e tem-se portado muito bem e evoluído imenso nestes poucos meses. Ontem levei à Irmã o valor que me enviaram de Portugal para estes miúdos e ela ficou comovidíssima. São 15 crianças que teriam de abandonar a escola e poderão continuar nela, uma vez que os seus estudos são financiados por madrinhas ou padrinhos de Portugal. Obrigada também a todos os que participaram. Parece que na Páscoa terão uma surpresa… Ou não fossem madrinhas!! :D Quem estiver interessado em apadrinhar pode contactar-me ou contactar a minha irmã Manela (manecoelho@gmail.com) que é a pessoa que está a orientar o processo aí em Portugal.

Bem, de resto foi trabalho, trabalho, trabalho… sem tempo para passear, com grande parte dos fins-de-semana a trabalhar. Visita às escolas das tabancas todas as manhãs, e algumas ficam a mais de uma hora de caminho para dentro do mato, e muito trabalho administrativo e logístico da parte da tarde. A isto ainda temos de juntar os encontros semanais com os formadores que eu coordeno para preparar as formações intensivas do final do período – 2 sessões de Português, três de Pedagogia e cinco de Português a leccionar aos professores das Missões Católicas. Tudo a ser leccionado em seis dias. Uma vez que eu tenho que observar as sessões dos meus formadores, vejam o quanto eu terei que percorrer naqueles seis dias finais no mês (seis turmas em locais muito distantes).

As horas e a temperatura também não têm ajudado… Como as aulas começam às 8 horas da manhã, eu tenho de sair cedíssimo de casa para chegar aos locais a tempo. Como não temos carro e tenho de alugar uma daquelas 7 places que andam muito devagar, chego a ter de sair com uma hora e meia de antecedência, ou seja, há dias em que saio de casa às 6.30 da manhã! Esta semana aconteceram-me dois percalços com o transporte – num dia atropelamos uma cabra! Nada de anormal, uma vez que andam todo o tipo de animais na estrada. Eu até andava a estranhar ainda não ter morto nada! O pior foi que com o embate estragou uma peça do carro e foi por sorte que conseguimos chegar ao destino. Outro dia o caminho era mesmo muito mau, com muitos buracos, e como o carro é baixinho, raspava com o fundo e acabou por romper o depósito do óleo. Dessa vez ficamos mesmo no caminho… Ai estas aventuras!

E agora o calor começou a apertar a sério! De vez em quando vem um ventinho que começa a puxar a chuva, mas ela ainda não quer vir! Há-di chegá! Por agora só o sol a queimar e o pó no ar. Depois de vir da tabanca (hora de almoço, pelas 13) e até às cinco da tarde não se consegue sair de casa nem do escritório. A verdade é que comecei a ser fã da sesta!

Já quase me esquecia de dizer que no final da semana do Carnaval, que fui passar a Bafatá, consegui finalmente conhecer o irmão do Roberto! Foi fantástico poder abraçar o irmão de um grande amigo, uma pessoa com quem eu já tinha falado por telefone, há muitos anos, logo na chegada do Roberto ao Porto, e que nunca imaginei poder conhecer. Tiramos fotos para enviar ao Roberto, claro está!

E deixei as duas principais novidades para o fim: a primeira é que decidimos ir a Portugal passar a Páscoa, o que deixou as nossas famílias muito contentes e já nos pôs a contar os dias! :D

A segunda, é uma longa história que passo a contar – estávamos nós sossegaditos a gozar a paz de Canchungo, quando abre um concurso para coordenador de uma ONG guineense, financiada pela União Europeia. Alguém nos reencaminhou o email achando que o perfil pedido era mesmo a cara do Miguel. Claro que ponderamos o assunto, mas achamos que estávamos bem e que talvez não fosse a altura certa para mudar. Mas a vida tem destas coisas e num fim-de-semana, em Bissau, o Miguel encontra um dos elementos da dita ONG, num café, que traz o assunto à baila e o aconselha a concorrer. Já tinha ouvido falar muito bem do Miguel e do seu trabalho (vejam só o meu orgulho!) e gostaria mesmo muito que o Miguel concorresse, que tinha o perfil ideal para o lugar, etc, etc, etc. O Miguel não se deixou seduzir imediatamente mas a verdade é que foi “namorado” dois dias seguidos e acabou por concorrer mesmo no último momento (já fora do prazo, na verdade!). A proposta era muito tentadora! E bem, o resto é fácil de imaginar – ficou entre os cinco seleccionados pelo CV, foi à entrevista pessoal (e houve entrevistas feitas em Portugal), e foi o seleccionado. Vocês esperavam outra coisa? :D

Já assinou contrato e começará funções em meados de Abril, depois de regressarmos de Portugal. E estamos ambos muito entusiasmados – um cargo de coordenação de uma ONG muito forte na Guiné, a Tiniguena; boas condições de trabalho; uma ONG local, o que sempre atraiu o Miguel; uma área de trabalho muito ligada aos estudos que ele acabou de fazer (o Marketing e a Gestão); o trabalho da Tiniguena, muito ligado aos pequenos projectos locais e muito na linha do micro-crédito, no qual nós acreditamos como solução para o desenvolvimento… O projecto em si chama-se “Kil ki di nôs tene balur” – o que é nosso tem valor! Bonito, não?

E é assim… lá vai o rapaz para Bissau, para a boa vida, e eu fico por cá, no interior, a sofrer as agruras do terreno! :D :D Claro que passaremos metade da semana juntos entre eu ir a Bissau e ele vir cá mas, teremos de nos desabituar a passar 24horas por dia juntos, o que, e podendo parecer estranho, nós adoramos. É o início de uma nova fase nesta nossa vida estilo “montanha-russa”. Uma coisa é certa – ficarmos aqui mais dois anos, a duração do contrato do Miguel. Eu não sei bem o que farei à minha vida no próximo ano, mas sem dúvida que ficarei por cá, pela Guiné.

Um abraço apertado e até muito breve! :D

Vejam lá se chamam o bom tempo para nós… já não sei o que é ter frio! :D