01/05/10

Os diferentes conceitos de casa...

Portugal, apesar de deixado há apenas duas semanas parece estar já tão longe…
Gosto sempre de dizer que não consigo ver estas duas minhas vidas numa mesma linha recta mas sim em duas linhas paralelas, em dois tempos e espaços diferentes, em duas dimensões distintas. Penso que não é possível levantar voo em Lisboa e aterrar em Bissau, sem sofrer um choque que vai muito para além de tempos e espaços. Não quer dizer que se não goste, é apenas a constatação de um facto!

Estou no jardim da nossa casa em Bissau, um calor magnífico, árvores e flores bonitas, uma mesa de esplanada… luxos a que eu não estava habituada, mas que me surgem, ao fim-de-semana, como uma bênção para o corpo e para a alma. A água corre da torneira e a luz, apesar de intermitente, permite-nos ter iluminação, carregar telemóveis e computadores e ter um frigorífico eléctrico. Mas o melhor é mesmo o estar com o Miguel.

Volto atrás. Os dias passados em Portugal foram óptimos para sentir o calor da família, dos amigos e de todos os outros por quem fomos passando e que, mesmo sem sentirmos muito, fomos marcando de uma forma ou de outra. Apesar do sentimento de cansaço por não podermos parar um minuto entre as visitas, os lanches e jantares, é uma riqueza apercebermo-nos do quanto temos à nossa espera no outro canto do mundo.

Estranho, nunca tinha ido de férias a Portugal!

Apesar de uma ou outra discussão mais intensa, normal porque estas já são, de facto, as “nossas causas”, não foi difícil sentir-me compreendida. Sinto que o que não é fácil, é explicar o que de facto vivemos e sentimos, se vive e se sente por aqui. Há experiências que não se descrevem… talvez todas as experiências muito marcantes e muito interiores não se possam descrever. Por isso gostava que viessem e vissem, e tocassem, e ouvissem, e experimentassem e sentissem. É algo muito nosso que, por mais esforço que façamos, não se consegue contar.
Foram dias muito felizes, entre abraços, perguntas e novidades mútuas. Foram dias felizes e agradeço-vos por isso.

O Miguel voltou mais cedo, como sabem, devido aos novos compromissos profissionais, e foi quase directamente para as Ilhas, onde a Tiniguena tem muitos projectos e ele foi inteirar-se da realidade. Foi de canoa, apanhou tempestade no mar e chegou todo encharcado depois da canoa meter água por todos os lados (porque é que estas coisas emocionantes só acontecem a ele, que não gosta nada destas coisas, e não a mim, que iria ficar toda emocionada???)… Os dias lá foram magníficos, segundo o que ele conta. Uma vivência muito perto das populações, a comer mangas e cajus de árvores que, de tão carregadas, deixam cair os seus frutos, a participar em cerimónias tradicionais, etc. Está todo contente com as suas novas funções.

Quem sentiu muito a diferença fui eu. Como eu já dizia, aterrar em Bissau é sempre um murro no estômago. Dormir numa casa, alugada por nós, mas a qual nunca tinha visto, que ainda não me é nada. Volto a Canchungo, a minha CASA, mas também essa está mudada, sem a presença sorridente do Miguel a iluminar os cantos da casa, a fazer parecer pouco importante a falta de água, a falta da luz… Que pieguice, bem o sei, mas confesso que me custou aquela primeira semana por cá. Para mais, o trabalho todo atrasado, formação para dar no sábado e todo o material para preparar… o Miguel sem rede para me ligar, e quando o conseguia era sempre aos soluços, mal dava para falar… E fizemos quatro anos de casamento no meio desta confusão! :D

O que valeu foi a presença do Cirilo e da Catarina que, como família que somos, de tudo fizeram para que eu não me sentisse triste. Até foram "jantar fora" comigo no dia do aniversário! :D

Na segunda feira, 26, ele chegou das Ilhas, voou para Canchungo, e tudo voltou ao normal! Cheguei, chegamos (sim, porque ele tinha sentido o mesmo que eu), finalmente, a CASA!

Por aqui… tudo normal, como na Guiné! Ou seja, a instabilidade política mantém-se. Fala-se de nova confusão para breve – ainda não há chefe de estado-maior das forças armadas (cemfa), o mais provável é que seja um dos revoltosos, o que a comunidade internacional não aceita. Mas é quem detém o poder dos militares. Fala-se num provável atentado ao primeiro-ministro. A verdade é que quando o presidente viajou, com o vice-cemfa, na semana passada, numa visita oficial à Líbia, o primeiro-ministro também viajou para a Europa, de urgência, dizem que percebendo que seria a altura ideal para sofrer um atentado. No fim-de-semana passado houve qualquer coisa. Ninguém sabe bem o quê, mas esteve para acontecer algo, pois todos falam nisso. E ninguém sabe nada! É fantástico! E nós temos de aprender a viver desta forma, é a única solução. Portanto, não se admirem se a Guiné-Bissau aparecer nas notícias, em breve, por motivos menos agradáveis!

O calor chegou a valer… Dificulta o adormecer e põe-nos o suor a correr no corpo, que fica com um cheiro intensíssimo. Tudo tem um cheiro intenso nesta terra!
De vez em quando já se sente um vento a querer puxar a chuva, eu já a sinto no ar, mas todos me gozam, dizendo que ela só virá no final do mês. O calor faz-me desejar que chegue mais cedo, para refrescar casas e corpos! Sei que depois a Guiné ficará intransitável e todos ficaremos mais ou menos reféns do lugar onde estamos mas a lembrança da chuva a bater nos telhados, do cheiro que a terra liberta, do coaxar dos sapos toda a noite, do banho tomado à chuva … Uhmmm! Que venha, que venha depressa!...

Com esta época quente veio também a época da manga, do caju e do ananás. É fantástico o que se aprende aqui sobre a natureza. Como não temos os “frescos do Pingo Doce”, acabamos por perceber as “épocas” das coisas, os ciclos. A paisagem ficou linda, linda. Como grande parte das árvores são mangueiras e cajueiros, é lindíssimo viajar e ver as árvores pintadas com o amarelo e laranja das mangas, penduradas de forma mágica, e o vermelho vivo dos cajus, quase lembrando cerejas. Pela primeira vez comi caju. Em Moçambique já tinha aprendido (ai esta ignorância!) que o caju que nós conhecemos em Portugal não é exactamente o fruto do cajueiro. O cajueiro tem um fruto vermelho vivo, muito doce e com uma textura estranha, que é o caju (a mim faz-me lembrar o diospiro), e que, na ponta, tem um rabinho, como se fosse um feijão. Aí dentro é que está a castanha de caju, muito apreciada na Europa, e que, depois de torrada, se come, que é o que nós conhecemos como caju. Como eu dizia, já tinha aprendido isto em Moçambique, mas nunca tinha tido a oportunidade de comer o caju, que, a dizer a verdade, ainda não me convenceu muito mas… vou dar-lhe uma segunda oportunidade!

Para a Guiné, esta é uma época única no ano, visto que o caju representa cerca de 90% da exportação do país, o que significa que é quase a única altura em que a maioria das pessoas das tabancas sabe o que é o dinheiro, é a única cultura de renda para a GB. Explico-me. Nesta época, o governo decreta a abertura da campanha do caju, e o sistema já está montado com uma série de empresas a comprar o produto em bruto e a fixar o preço do quilo (que este ano está em cerca de 200francos cfa – 30 cêntimos). Assim, todos estão a proceder à apanha do caju de forma a poder receber algum dinheiro, para alguns, o único que recebem todo o ano.

Este facto tem uma grande implicação nas escolas já que muitos pais não deixam os filhos irem às escolas durante o período da campanha de caju para que estes possam ir ajudar na sua apanha, o que faz com que muitas escolas tenham uma taxa de absentismo elevadíssima nesta altura e que os alunos percam cerca de um mês de aulas!
Algumas escolas, para poderem ter algum dinheiro para as suas despesas, oferecem as suas turmas para irem apanhar caju em grandes propriedades, a que chamam o dia de “trabalho produtivo”. Iniciativas que a nós nos parecem bizarras, mas que parecem fazer todo o sentido neste tipo de economia em que as escolas estão por sua conta, já que o estado não consegue dar-lhes nenhum tipo de financiamento.

Um dia destes queixava-me, em casa, que não encontrava caju à venda no mercado, o que não me parecia fazer sentido com tanto que eu via a cair pelas estradas das tabancas. O Almeida, rindo-se, disse-me “é exactamente por isso, por toda a gente ter tanto caju que não vale a pena pôr à venda que ninguém compraria”. Boa questão! Nunca tinha pensado assim. “E para os brancos, que não têm ponta (terreno de cultivo), porque não vendem?” “Porque em Canchungo não há brancos que justifiquem!” Ok, percebi! Mas ele prometeu-me que me iria trazer muitos quando fosse à ponta dele.

Ao nível do trabalho, para além do imenso trabalho burocrático (relatórios de observação de aulas, introduzir valores de provas em grelhas estatísticas, etc) e da preparação das sessões de formação com os meus formadores, continuo a segunda ronda da visita às escolas para observar as aulas. Esta semana estive numa escola que parecia o paraíso – feita de traves e folha de palmeiras, no meio dos cajueiros e mangueiras, com o som do vento a agitar as árvores, o cantar das aves e vozes de tantos animais (vacas, cabras, porcos…)… mesmo, mesmo paradisíaco! O pior foi mesmo o facto de ter de me sentar num pau com cerca de 10 centímetros de largura onde, como podem imaginar, eu não cabia nem metade, durante cerca de duas horas. Se já para os miúdos não é confortável, imaginem para mim, que ocupo um espaço considerável! O melhor momento foi mesmo quando todos se levantaram para cantar o hino nacional e eu pude levantar-me e descansar um pouco. :D O mundo não é mesmo perfeito, mas acho que se me tivessem deixado sentar no chão, eu me teria sentido bem perto da perfeição naquele momento!

E termino com um acontecimento muito, mas muito caricato: no sábado passado eu tive formação toda a manhã, das 8 às 14h. Cheguei a casa, comi qualquer coisa e fui deitar-me na cama, deixando a porta da casa aberta, apenas fechada no mosquiteiro, pois esperava que os meus formadores regressassem todos das respectivas formações para me trazerem o material, fazermos contas, etc, e me chamassem da porta de entrada. Não imaginam o susto que apanhei quando acordei com uma pequena chimpanzé a pular em cima da minha cama, na qual eu estava deitada a dormir! Pois… é mesmo verdade! Acordei com a Helga a saltar para cima da minha cama!
A Helga é uma chimpanzé que uns chineses “adoptaram” mas que, como fazia muitas asneiras e era muito traquina, a ofereceram ao seu funcionário guineense, que a deixa vaguear um pouco pelas ruas de Canchungo. Já não é a primeira vez que ela tenta entrar em nossa casa. Já de outras vezes eu ouvi mexer no trinco do mosquiteiro e vindo ver quem era dou de caras com a Helga. Desta vez ela conseguiu forçar mesmo o trinco e entrar em casa indo directa ao meu quarto, que estava com a porta aberta para ouvir os formadores a chamarem por mim. Subindo para a cama, desata aos pulos, que me acordaram, dando eu um pulo para fora da cama. Fiquei em pânico! Penso que todos conhecem a minha relação difícil com os animais… não gosto de muitas intimidades! Pois tive de a ver a saltar em cima da minha cama, qual criança animada, da cama para a cadeira, da cadeira para a cabeceira da cama, da cabeceira atirar-se, com uma cambalhota no ar, para a cama, novamente, pendurar-se nos batiks que eu tenho colados na parede, fazendo com que se descolassem (depois de tanto trabalho!), brincasse com as almofadas… Bem, depois de um momento de pânico, veio aquele em que olhei para todo o lado à procura da câmara para os “apanhados” ou de alguém que me estivesse a pregar uma partida… e depois o momento de me desatar a rir à gargalhada e me divertir com as piruetas da macaquita! Comecei, depois de me recompor, o processo de a devolver à rua. Foi lento e árduo! Ela não queria ir de tão divertida que estava a saltar em cima da minha cama… ria-se como uma criança! Lá comecei a tentar empurrá-la com a minha mão para que ela saísse do quarto, mas ela devia perceber um novo impulso pois dava mais uma cambalhota e não saía. Começo a falar então com ela, perguntando-lhe se ela falava português ou crioulo! :D Acho que endoideci um bocado, reconheço, mas como ela não queria ir a mal, pensei que conversando me safasse! Fui à rua procurar alguém que me ajudasse mas como era a hora de maior calor, não se via ninguém. Voltei para dentro e com uma atitude de perseguição cerrada, muitos argumentos em crioulo, e a atracção de uma banana (genial, hein?), lá consegui que ela deixasse o meu quarto indo enfiar-se no escritório. Bem, pelo menos estava mais perto da porta. Novas tentativas de a pôr na rua mas ela novamente atraída pelo balanço das cortinas do escritório, onde se pendurou, por subir e descer a pasta da minha guitarra… entretanto veio alguém que me ajudou a tentar tirá-la e conseguimos trazê-la para a entrada da casa, mas ela agarrou-se a uma perna da mesa da entrada e começou a chorar… incrível, parecia mesmo uma criança! Quase me comovi! O rapaz também e foi-se embora, dizendo que ela não queria mesmo deixar a casa! Fiquei possessa… não queria ela mas queria eu que ela saísse! Olha que esta! Usei novamente a técnica da banana e consegui que ela saísse para o terraço, finalmente! Mas não é que ela ficou o resto da tarde à porta de casa a choramingar, com o dedo na boca? Poça! Que coisa me havia de acontecer! E a cena só acabou por volta das cinco da tarde quando chegou um dos meus formadores e vendo-a ali a carpir a levou ao dono, ralhando com ele por não a manter na linha! Pobre Helga! E pobre de mim que tive de deitar toda a roupa que tinha no quarto para lavar e na qual ela se andou a esfregar e a pendurar. Ainda hoje acho que o meu quarto ficou com cheiro a chimpanzé, mas deve ser sugestão! :D

E bem, até ao meu regresso a Bissau!
Abraço e fiquem bem!

2 comentários:

Amor à Camisola disse...

Olá, amigos,

realmente não falta animação por aí. Chega a ser emocionante ler-vos.

Força e continuem com essa vossa energia boa!

beijos e abraços, João

Magda disse...

Olá Sá e Miguel, como estão? em 1º desejamos-te um feliz aniversário atrasado.2º a minha mãe é formanda da tua amiga eunice e foi ontem ao centro social das antas (como o mundo é pequeno), quando te viu no video reconheceu-te logo do nosso casamento. Desejamos-vos muitas felicidades e continuem o bom trabalho. Beijinho da Sandra, Zé e Ana Sofia