07/06/10

Notícias da Guiné X



Amigos, cá estamos nós ao fim de algum tempo, ausência desculpada (espero eu!) pelas fotos colocadas há quinze dias atrás, mesmo que sem o devido texto a acompanhar.
As desculpas são as mesmas de sempre e mais uma – trabalho, trabalho, trabalho… e uma semana de férias na Gâmbia! :D
O mês de Maio foi um mês muito cheio de trabalho e de novas sensações.
Foi o mês da última visita às escolas para observação das aulas dos professores, motivo de orgulho ao ver alguns avanços e empenhos, motivo de desespero por ver que, tantas vezes, nada mudou. O normal ao fim de um ano de trabalho, certo?
Para mim, foi também a oportunidade, mais uma, de visitar o país real, as tabancas do interior, onde não passa um carro durante o ano inteiro à excepção das nossas visitas, onde o conceito de “safari” se torna banal pela beleza quotidiana, pelo grandioso sentido da imensidão e do divino que nos tomam o ser. Pela última vez visito as escolas e recebo mangas e caju em troca. Tudo é dado nestes pequenos presentes.
Foi o mês da Feira do Livro no Liceu de Canchungo. Uma verdadeira surpresa para todos! Penso que ninguém esperava o que aconteceu. O director do liceu tinha planeado, ainda com o Miguel, uma feira do livro na semana da celebração do Hô Chi Minh, rebelde vietnamita que deu o nome ao liceu e que se comemora no dia 19 de Maio. Todos pensamos curto e colocamos à venda apenas alguns livros oferecidos pela Embaixada de Portugal e de uma editora guineense. A afluência foi tão grande que tivemos de procurar novas soluções e colocamos à venda manuais escolares e outros materiais que existiam no contentor da FEC. Claro que vendemos tudo a preços muito simbólicos (cerca de 75 cêntimos cada livro), sobretudo para evitar a “caridadezinha” em que tudo é dado, e a verdade é que se venderam 374 livros! Foi um sucesso espantoso que ninguém previa! No próximo ano já decidimos fazer algo mais bem planeado, com livros mais adaptados à realidade e que possa melhor satisfazer a procura. Mas, ainda assim, não deixou de ser surpreendente a vontade de livros que sentimos naqueles dias. Foram dias de loucura, a nível de trabalho, mas valeu a pena, não há dúvida disso.
A nível institucional foi um momento de grande promoção da FEC pois aparecemos na comunicação social e o liceu mostrou uma gratidão enorme por esta nossa iniciativa. Foi gratificante!
Foi ainda o mês da distribuição de manuais escolares da primeira classe (os únicos que se encontram à venda na Editora Escolar) às dezasseis escolas do projecto deste ano, para além da entrega dos manuais dos professores aos professores das quatro classes. Foi uma trabalheira contar e separar mais de 900 kits de manuais, mas é sempre uma alegria chegar às escolas e ver a forma como são recebidos. Nem consigo imaginar o sistema de ensino português sem manuais…
E, para terminar, foi ainda o grande mês das obras da escola de Bidjope! No dia 18 visitei a escola e foi espantoso ver as paredes todas levantadas, a comunidade toda envolvida em torno do fabrico dos tijolos de adobe e da construção das paredes, já bem visíveis. Aproveitei e fiz uma reportagem completa do mesmo – apresentei todos os cantos da obra, entrevistei o director da escola, o inspector do sector, alguns alunos que estavam presentes…Foi uma grande alegria ver o nascimento de uma obra que todos sonhamos e auxiliamos. Na semana passada, com o dinheiro enviado, a FEC comprou o zinco, os pregos e o cimento necessários e transportou todos os materiais para Bidjope, onde as obras terão de continuar a bom ritmo, uma vez que as chuvas já ameaçaram por três vezes. Em breve não nos largarão de vez, e quem não preparou a sua casa, já não terá oportunidade de o fazer até Novembro.
Em Portugal soube de histórias lindíssimas sobre esta campanha de Bidjope e tenho pena que as pessoas não as coloquem por escrito para poderem ser divulgadas aqui neste mesmo espaço. Uma que muito me marcou foi a de um amigo que tem uma espécie de ATL e que sensibilizou as crianças e os pais para esta construção de uma escola na Guiné. De uma coisa de nada ele conseguiu mobilizar uma série de pessoas para a solidariedade. E sei que isso aconteceu com diversas pessoas, às quais agradeço. Agradeço eu e agradece o mundo, pois não são apenas as crianças de Bidjope que beneficiarão com a nova escola, serão também as crianças que participaram e que se poderão tornar adultos mais atentos ao mundo que os rodeia, ao mundo que precisa deles e que está mesmo debaixo do seu nariz. Estas campanhas nunca ajudam só quem recebe, ajudam também aquele que participa activamente.
Por aqui o calor está insuportável. É ler todas as descrições do tempo na Guiné e acreditar que tudo é pouco para o que se sente na verdade – é uma moleza indescritível! Só apetece ficar deitado na cama, com uma ventoinha próxima (ai de nós que não temos electricidade durante a tarde!) numa completa languidez, o que é impossível devido ao imenso trabalho. Sempre que não vou a conduzir adormeço todo o tempo das viagens, tal é o cansaço provocado pela temperatura. O suor escorre por todo o corpo e nem o banho consegue apagar a sensação de calor que todo o corpo emana. O nosso próprio cheiro se altera e é de uma intensidade brutal. Tudo tem um cheiro intensíssimo. As breves visitas da chuva, três noites até agora, deixam a promessa de uma lufada de ar fresco e o cheiro a terra molhada que inunda as casas. Deixam também antever o estado das estradas de terra batida, completamente intransitáveis logo ao fim de uma noite de chuva. Não queremos imaginar como estarão ao fim de cinco meses! Em alguns locais que ficam inacessíveis já começaram as compras de provisões para toda a época das chuvas. Felizmente isso não acontece em nenhum dos nossos locais de trabalho - Canchungo, Bafatá e Mansoa -, já dotados de estrada de alcatrão até Bissau.
A apanha da castanha de caju está a chegar ao fim, mas ainda há um cheiro a caju em todas as estradas ladeadas por esse fruto, tão doce e colorido (que continua sem me conseguir convencer!). As mangueiras estão todas carregadas e por todo o lado se vêem mangas caídas no chão. Tem sido uma parte importante da minha alimentação. Como cerca de quatro mangas por dia, daquelas enormes (sim, já sei o que são “mangas de faca”, Roberto!) e com um sabor fantástico. Já para não falar dos sumos e doces que se fazem (e as irmãs nos oferecem!). Tudo serve para aproveitar este dom da natureza. Também ele há-de acabar e dar lugar a outras frutas. Fico sempre surpreendida com esta sazonalidade dos produtos, já esquecida no nosso mundo, onde há de tudo, durante todo o ano.
Na semana passada, e porque como trabalho em alguns fins-de-semana tenho direito a gozar esses dias, meti cinco dias de compensações e fui viajar com duas colegas. Andamos a pensar onde ir e chegamos à Gâmbia, como destino. Para o sul e o leste não é possível ir devido aos problemas na Guiné-Conakry; para o oeste… é mar, só se fossemos para os Bijagós, mas todas já conhecíamos algumas ilhas. Sobrou-nos o norte. O Senegal e a Gâmbia. Como o Senegal é já ali, já era conhecido por uma das colegas, optamos pela Gâmbia, e optamos muito bem!
Passamos dois dias em viagem, um à ida e outro no regresso, e três dias a aproveitar o país.
A Gâmbia é o mais pequeno país africano (sete vezes menor que Portugal!) e é rodeado pelo Senegal por todos os lados, excepto pelo lado ocidental, onde faz fronteira com o mar. O seu território estende-se para o interior nas margens do rio Gâmbia. Começou por ser um território de ocupação portuguesa, onde chegaram em 1444 sobretudo para a compra de escravos, mas vendido à coroa inglesa, no século XVI, tendo sendo um território sempre disputado pelos franceses. A Gâmbia é independente desde 1965 e tem como língua oficial o inglês. Partilha com a Guiné o facto de ter uma língua oficial diferente numa região toda ela francófona.
As viagens, por terra e sem transporte próprio, como foi o nosso caso, são uma aventura… Partimos às 10.30 de Bissau e chegamos a Bakau às 19h! Apanhamos 7 places em Bissau até Ziguinchor, já no Senegal; dali partimos noutra para Seleti, fronteira com a Gâmbia; daí para Brikama, oeste do país; e daí para Serekunda. Finalmente apanhamos um táxi para Bakau, cidadezinha à beira da praia, onde ficamos. Tudo isto a passar em inúmeros controlos de passaporte, de entrada e saída do país (em poucas horas cruzamos três países!), inspecção das mochilas, etc. Que dias!
No primeiro dia em Bakau decidimos ir de manhã à praia (afinal, somos iguais aos turistas de todo o mundo! E a Gâmbia tem praias bem bonitas!) e à tarde visitar o parque natural de Tanji, onde, para além de um passeio de três horas num percurso que incluía mata e beira da praia, pudemos observar os pássaros. A Gâmbia é conhecida pelo número incontável de espécies que possui. Devo confessar que não sou grande amante de animais em geral, mas o passeio foi bonito e lá andamos nós de binóculos atrás de não sei bem o quê! :D
No segundo dia fizemos uma viagem de barco pelo rio Gâmbia. Foi, para mim, o dia mais enriquecedor. Saímos do porto de Banjul, a capital, e partimos para leste, para o interior do país, subindo o rio. Foram três horas até alcançar os locais a visitar – Albreda/Jufureh e a James Island, Património Mundial da Humanidade. Os dois primeiros locais são pequenas localidades na costa, conhecidas por terem sido um grande entreposto de comércio de escravos (iniciado pelos portugueses e continuado, como já referi, por ingleses e franceses), onde se pode visitar o Museu da Escravatura e alguns pequenos monumentos construídos em celebração do fim da mesma. Realiza-se aqui um festival bianual contra a escravatura, mundialmente famoso. Muitos lembrar-se-ão da série dos anos 80, “Raízes”, sobre o escravo Kunta Kinte, baseada no livro de Alex Haley, afro-americano descendente do herói do livro. Eu não me lembrava (os meus interesses nos anos 80 ainda eram outros!!) mas o Miguel lembra-se muito bem. E Jufureh é a tabanca de Kunta Kinte, de onde ele foi retirado e vendido para a América. A James Island, Património Mundial da Humanidade, ilha a cerca de 4 kms das tabancas da costa, é o local onde os escravos eram guardados para não fugirem. Conta a história que a quem se conseguisse libertar do forte e chegar a Albreda seria dada a liberdade, mas conta-se também que nunca ninguém conseguiu esse feito. A ilha está a sofrer um aceleradíssimo processo de erosão, também pela subida do nível das águas do mar, e já não se vê muito do antigo forte, em grande estado de ruína. No entanto, a ilha tem qualquer coisa de mágico – talvez pela sua pequenez, talvez pela nebulosidade com que nos recebe, talvez pelos inúmeros embondeiros que cresceram e que parecem, eles próprios, serem os únicos suportes da ilha, meia suspensa, pelas suas enormes raízes. É um lugar bonito e com um espírito próprio.
O regresso a Banjul não foi fácil devido às marés (apesar de ser rio, tem uma enorme extensão de água salgada com influência do mar e das marés) e apanhamos um pouco de tempestade. Também é normal e dá um pouco mais de cor à aventura. :D
No terceiro dia visitamos Brikama, algumas tabancas (queríamos comparar a vida real da Guiné com a vida real da Gâmbia) e o mercado de Serekunda. Foi um dia bem passado! Aliás, foram uns dias bem passados!
O maior problema da Gâmbia é o seu tipo de turismo – muitas mulheres de meia idade, europeias, vêm aqui à procura de gambianos jeitosos que passem consigo as suas férias e sejam seus “namorados” por um período mais ou menos longo. No fundo é um país de grande prostituição masculina, o que faz com que as mulheres sejam abordadas com muita insistência nas ruas, o que nos fez alguma confusão. Chegamos a estar a jantar e estarmos rodeadas de casais deste tipo – mulheres brancas de meia idade e gambianos jovens – e nós as únicas três jovens, brancas e sem gambianos à mesa! Que estranho!
Lá regressamos nós à vida real, em Bissau, eu já cheia de saudades do maridinho! :D
No regresso, nada de novo – Bissau inteira está preocupada com a situação da Guiné. A instabilidade mantém-se; o primeiro-ministro está fora do país há algum tempo (com medo de ser morto, dizem por aqui); ainda não há chefe de estado-maior das forças armadas (CEMFA) e o anterior continua preso pelos rebeldes do 1 de Abril; o vice-CEMFA, um dos rebeldes, quase que se auto-proclamou como novo CEMFA e anda por aí livremente a querer mandar no país; o Bubo, o outro rebelde, está a juntar os seus apoios militares e é acusado de ser a maior personalidade do narcotráfico na Guiné… Nada está, de facto, resolvido, e a comunidade internacional diz que se não houver inquérito e justiça para com os rebeldes, vai lançar sanções contra a Guiné, podendo mesmo passar pela diminuição drástica do apoio e pelo encerramento e debandada das delegações no território… E estamos nós fritos outra vez! É incrível e revoltante como uns poucos, por questões de poder, podem fazer mal e ditar os destinos de tantos, de um país inteiro! Veremos como vai isto acabar, mas o clima é tenso e parece sempre que em breve acontecerá qualquer coisa. Como se pode viver assim? Vamos aprendendo, todos os dias!
De resto, tudo normal! Como dizem os próprios guineenses, habituados já a esta “normalidade”.
O mês de Junho é quase de recta final – visita às poucas escolas que faltam, redacção de centenas de relatórios, inserção de muitos dados, preparação das formações de Junho e das dezasseis sessões intensivas de Julho… Vai ser demasiado burocrático para meu gosto mas… também é um trabalho necessário! O Miguel continua por Bissau e o trabalho corre-lhe bem. É tudo novo e pressupõe uma nova adaptação. Ressentimo-nos, reconhecemos, da distância entre Bissau e Canchungo, antes tão habituados estávamos a partilhar 24 horas por dia. Mas as visitas mútuas ajudam a aliviar as saudades e eu venho (ou ele vai) todos os fins-de-semana, tornando-os prolongados com os dias de compensação (muitos) que ainda me restam gozar.
E bem, despedimo-nos, mais uma vez, com um abraço apertado. Vão mandando notícias, que é bom saber o que se vai passando por aí.
Até à próxima e “passa sabi” (fiquem bem!)

1 comentário:

Pedro Ribeiro Pereira disse...

Embebido em todo o espirito enfadonho de exames universitários, é sempre extraordinário retomar a lufada de ar fresco. Embora já cinco anos tenham decorrido desde o momento em que me ensinava a tal História do Mundo é-me gratificante poder continuar a acompanhá-la e, embora duma outra forma, continuar a aprender sobre esse mundo!
Beijos,
Pedro (Ermesinde)