19/02/10

Notícias da Guiné VII


Então, ainda continuam por aí? Os comentários diminuíram… talvez já tenham deixado de sentir saudades nossas, quem sabe! :D Ou então já não escrevemos nada de novo :D

Esperamos que tenham gostado dos excertos do livro “O outro” e que tenha sido uma base para algumas reflexões sobre os outros que passam nas nossas vidas!

Este mês foi um mês bastante normal (por aqui até se diz “tudo normal, como na Guiné”) – trabalho, trabalho, trabalho e Carnaval!

Quanto ao trabalho este foi um mês puxado com as visitas todas às escolas das tabancas, mas também gratificante pelo contacto mais directo com os professores e as crianças. Faz-nos perceber melhor a verdadeira realidade do interior da Guiné, bem diferente da realidade de Bissau.

Este contacto mais directo tem-nos obrigado a reflectir mais profundamente sobre a questão linguística.

O nosso projecto é de promoção e divulgação da língua portuguesa. Tudo estaria bem se esta não se tornasse numa questão fundamentalista, bastante marcada por pressões políticas e económicas vindas do mundo lusófono. Claro que o português é importante num país cuja língua falada por todos é uma língua apenas oral, sem estrutura escrita. Claro que a Guiné poderia beneficiar com as publicações já existentes em língua portuguesa – de Portugal, dos PALOP e, sobretudo, do Brasil -, e também é claro que o português será a língua da ciência pois o crioulo não tem termos técnicos. Mas… de que vale impor o português se, de facto, quase ninguém o fala? É deprimente ir assistir a aulas da primária em que os professores falam português o tempo todo (talvez por eu estar presente, bem o sei), achando que estão a cumprir muito bem as orientações superiores, quando os alunos não percebem nada porque não conhecem a língua em que a aula está a ser dada! Eu própria, que me considero uma boa aluna, dificilmente teria aprendido a ler e a escrever, com sete anos, se as aulas me fossem dadas em chinês!! Já imaginaram o que é aprender a ler e a escrever (já por si só duas técnicas difíceis de aprender) numa língua que nada significa para nós? Só existem significantes e nada de significados… Deve ser desesperante! É necessário uma reflexão séria sobre o que interessa – a língua em si ou a passagem de conteúdos?

Eu, por mim, sou muito mais a favor do bilinguismo – será a única forma de fazer uma passagem natural do crioulo (ou da língua materna) para o português. Um pouco como começamos a fazer com o inglês na escola primária em Portugal.

E a Guiné ainda tem o problema da afirmação do Francês dos países aqui à volta. Muitas vezes encontro pessoas que falam crioulo e francês em vez do português! Viva a verdadeira confusão!

Muitas vezes, quando vou ao mercado, começo por falar português em casa, crioulo na banca de alguma “mindjer garandi” que não fala português, francês com o costureiro que é da Guiné-Conakry e com a senhora onde vamos buscar comida, senegalesa, e termino a falar Inglês com o vizinho de cima que é da Gâmbia. Como já tinha referido… é uma babel!

O nosso próprio prédio é uma experiência fascinante – portugueses, guineenses, mouros da Mauritânia, gambianos, senegaleses…

Por falar nisso, estou a falar crioulo que é uma maravilha! :D Afinal é a língua do país onde estou… porque não o haveria de aprender? Porque se acha que não tem cabimento e o que é importante é falar o português? Ai estes novos colonialismos!!!

O mais importante que eu posso deixar a estes professores são, de facto, as técnicas didácticas e, também é verdade, o desenvolvimento no seu uso do português, mas não tenho ilusões que o português se torne a verdadeira língua falada por todos os guineenses no seu quotidiano. E, para falar a verdade, nem sei se teria lógica!

Tenho pena de não conhecer melhor as experiências espanholas e italianas sobre o desenvolvimento paralelo e manutenção dos dialectos e da língua nacional. Pelo que percebi da vivência com italianos, em Moçambique, e agora com espanhóis, também não foi algo pacífico. Muitos espanhóis ainda hoje se apresentam como “catalães” ou “galegos”, sendo que a questão linguística é uma marca muito forte neste sentimento de “não pertença”.

E voltamos ao mesmo tema da minha tese de mestrado… Como se forma uma identidade nacional em países como estes, com uma história tão retalhada, tão fragmentada, repletos de etnias diferentes? O que os une de forma a que se possam sentir guineenses? Uma só língua? Não! Uma só religião? Não! Costumes e raízes comuns? Não!...

Estes novos países não têm mesmo uma tarefa fácil… Só de me lembrar que nós somos “portugueses” desde 1143 (pelo menos no papel pois as identidades precisam de tempo para se criarem)… são apenas mais 900 anos! E nós, países do Norte, queremos exigir aos países africanos que façam o que nós fizemos em séculos (sim, porque somos herdeiros directos dos gregos, romanos, etc…) em apenas algumas décadas! E de uma forma imposta, exportando um modelo que nada tem a ver com as realidades africanas…

Bem, deixo-me de exaltações :D

Também não nos têm faltado momentos de lazer. Em Canchungo, no início do mês, assistimos à missa nova de um novo padre, filho de Canchungo. Foi uma cerimónia muito bonita, um misto de religião tradicional com os rituais católicos. Saímos da casa da família do novo padre, em procissão. Ele trazia vestidas as vestes tradicionais e pelo caminho iam elementos representando o trabalho agrícola, fundador de toda a sociedade africana, os familiares já falecidos, a fecundidade. Chegados à igreja, vestiu as vestes do ritual católico e presidiu à eucaristia, animada por cânticos emotivos, por danças, procissões de oferendas, etc. De um sincretismo incrível! Estavam presentes representantes da igreja muçulmana e da igreja evangélica, os chefes da religião tradicional, o régulo de Canchungo, o Administrador da região… A tradição e a modernidade, as diversas crenças, tudo reunido num dia de festa comum para os filhos de Canchungo. São momentos de um grande ensinamento para nós!

Recebemos, entretanto, duas novas colegas na FEC, com a abertura de um novo projecto ligado à Educação de Infância. Outra realidade esquecida, até agora, na Guiné-Bissau, e que poderá, se atingir bons níveis de qualidade, ajudar a resolver alguns graves problemas da língua e da educação na Guiné-Bissau. Veremos o que vai acontecer! É o mal de se trabalhar em educação – os resultados nunca se conseguem medir no curto prazo!

Uma destas colegas passou uns dias em nossa casa para conhecer melhor a realidade dos Jardins do interior e então andamos a fazer algumas visitas – umas mais educativas, outras mais turísticas. Só nesta altura me apercebi que desde que chegamos (e já lá vão quatro meses) nunca mais tínhamos ido ver o braço de mar que entra aqui em Canchungo! Que trengos… só vemos trabalho à frente e até nos esquecemos das belezas da terra! Claro que o fomos apresentar às visitas, aproveitando para usufruir da vista e relaxar um pouco.

Neste último fim-de-semana fui para Catió, capital da província de Tombalí. É apenas a 300 Kms de Bissau mas parece uma viagem ao fim do mundo.

Parti de Canchungo para Bafatá na Sexta-feira (a Guiné é tão pequena que só nesta viagem passei por quatro regiões diferentes – Cacheu, Biombo, Oio e Bafatá) para me encontrar com mais duas amigas com quem iria partir para a aventura no fim-de-semana – a Ana e a Catarina. Foi uma noite muito fixe, tipo “campos de férias” – dormimos as três no mesmo quarto, colchão no chão, e conversamos até às duas da manhã! Estão a ver o filme! O Miguel diz que nós parecemos saídas de um livro da colecção “As Gémeas” EhEhEh!

No Sábado partimos às sete horas da manhã com o objectivo de chegar a Catió, no ponta sul do país. Bem… foi uma viagem interminável! Fomos de Candonga (aquelas carrinhas tipo HIACE que levam tudo e mais alguma coisa dentro) e demoramos sete horas na viagem. Pelo caminho paramos em algumas “estações de serviço” para a costumeira “ida ao mato” e para comprar laranjas, bananas ou mancarra. Foi incrível! Passamos por três regiões diferentes (Bafatá, Quínara e Tombalí), com estradas inacreditáveis de terra batida repletas de verdadeiras crateras impossíveis de contornar. Mas bonito, muito bonito! E tivemos conversa para todo o tempo da viagem, o que ainda é mais admirável!

Em Catió, a Ana tinha trabalho mas eu e a Catarina aproveitamos para conhecer a cidade e passear um pouco. O Pe. Maurício, um dos padres da missão católica que nos recebeu, simpatiquíssimo, levou-nos a conhecer alguns locais bonitos e até o braço de mar que passa por ali. E, à noite, fez-nos uma carbonara que só por si já fazia valer a pena a viagem! :D

No Domingo de manhã foi um S. João para regressarmos – como já era o Domingo gordo, não havia transportes públicos a funcionar, excepto a candonga das sete da manhã a qual não podíamos apanhar pois a Ana tinha de estar presente numa sessão de formação das oito às nove. Bem, confiamos na sorte (e eu em Deus!) e ficamos à espera de outra solução. O pe. Maurício deu-nos um gozo valente e só dizia: “Estas raparigas têm um programa muito estranho!”. Na verdade, quem faz tantas horas de viagem para regressar na manhã seguinte? Entretanto eu fui à Missa e deixei a Catarina a procurar uma solução. E não é que se encontrou mesmo? Foi a mais hilariante possível! A região de Catió, como todas as outras, tinha uma comissão de festas para participar no Carnaval em Bissau e portanto partiam no Domingo, por volta das nove para Bissau… e lá nos deram boleia! Conclusão – viemos as três na candonga oficial do Carnaval de Catió, a abarrotar de gente quer dentro quer por cima (havia sofás e tudo no tejadilho da carrinha!), a apanhar com sete horas de assobios, batuques, megafone, palmas… íamos ficando surdas mas… chegamos a Bissau sãs e salvas (eu ainda ouço batuques constantes dentro da cabeça!). Melhor, as estradas de Bissau foram fechadas para os desfiles e nós iríamos ter fazer uns quilómetros a pé, mas como fomos na caravana oficial de Catió, pudemos passar até à Praça, mesmo onde queríamos ficar! Sentimo-nos as rainhas do Carnaval de Catió! :D

O Carnaval em Bissau foi uma agradável surpresa – é muito animado, muito organizado, muito genuíno. Participam grupos das diferentes regiões, consequentemente de diferentes etnias, com diferentes trajes típicos, músicas, e danças. Foi mesmo muito Afro! :D

E já estamos quase em Março… o tempo voa mesmo e o calor começa a apertar, de novo! Este próximo mês será de trabalho louco – imensas formações (sessões de Pedagogia, Língua Portuguesa e às Missões Católicas), a segunda observação aos professores das escolas das tabancas, respectivos relatórios, avaliação intermédia do projecto… digamos que as férias da Páscoa serão bem merecidas! :D Para iniciar bem o mês teremos os anos do Miguel, logo no dia 2.

Ah! Já agora, faço o ponto de situação do projecto da escola de Bidjope – a recolha ainda continua mas estamos a tentar fechar até à primeira semana de Março. As obras já começaram – a comunidade escolheu o terreno, já o limpou e preparou para a construção e estão na fase final de execução dos tijolos. A fase seguinte será construir as traves de madeira, também trabalho feito pela comunidade, e nessa altura nós compraremos o zinco e os pregos para realizarem a cobertura. O objectivo é concluir a construção antes das chuvas começarem, em Maio. Pela primeira vez, estas crianças poderão ter um ano lectivo normal, sem a interrupção com a época das chuvas. Não é incrível? Quem ainda quiser contribuir (e ainda seria necessário algum dinheirito) pode fazê-lo para o seguinte NIB 0038 0024 00485370771 26. Para mais informações, podem ainda consultar o blog criado por alguns alunos e amigos nossos – http://a-ponte-amiga.blogspot.com.

E bem, despedimo-nos com um abraço apertado e um até breve.

Temos saudades do Porto!


09/02/10

Excertos do livro “O Outro”, de Ryszard Kapuscinski

Este é um autor de quem gostamos muito. O seu livro “Ébano. Febre Africana” (oferecido pelo Nuno Olaio, um amigo que, curiosamente nunca visitou a África Negra) é um daqueles livros que nos deixa o sentimento de “era mesmo isto que eu queria dizer”… Recomenda-se a todos os que já viveram em África – sem dúvida que se vão reconhecer numa ou noutra passagem – e a todos os que gostavam de a visitar – é um belo ensinamento sobre como visitar e viver África (do ponto de vista de um Europeu, claro).

Estive a ler o seu livro “O Outro”, uma compilação de escritos e conferências deste jornalista viajante, onde se vai reflectindo sobre esse grande acontecimento das nossas vidas que é o conhecimento, o encontro com vários “outros” ao longo da nossa vida. Uns mais parecidos connosco, outros mais diferentes… Todos comportam em si um desafio, e é nele que está a beleza do caminho a percorrer.

Deixamos alguns excertos que nos tocaram mais, por uma razão ou por outra. Decerto é um tema inquietante para quem está a viver uma experiência como a nossa, rodeados que estamos de “outros”, muito diferentes de nós, sendo que somos nós os “desterrados”, o elemento estranho na paisagem. É estranho sentir-me branca tantas vezes… aí nunca penso nisso, e aqui não consigo dar um passo sem que não mo lembrem. E afinal, por que razão estamos nós aqui? O que estamos aqui a fazer? Qual a nossa atitude perante este mundo que nos acolhe? A arrogância de quem se pensa pertencer a um mundo civilizado e que tem uma missão civilizadora? Ou a atitude de abertura de quem encontra um nível de paridade entre culturas, tentando aproveitar os pontos mais fortes e partilhar as dores de cada uma? Não há margem para dúvidas que nos situamos na segunda posição, mas também sabemos que é inevitável cruzarmos com pessoas que adoptam a primeira postura. E é revoltante, acreditem que é revoltante.

O “outro” é sempre uma novidade, e aqui é mesmo um “outro” muito diferente, uma incógnita que vamos tentando desvendar, mas que, sabemos, permanecerá sempre uma descoberta para nós.

Deixamo-vos, então, com alguns excertos do livro (que iremos continuar nos próximos tempos) - que o reflectirmos sobre eles possa ajudar-nos a pensar um pouco também sobre cada um de nós:

«Cada uma das pessoas encontradas pelos caminhos do mundo comporta em si dois entes; trata-se de uma dualidade de separação geralmente difícil, de que nem sempre nos apercebemos. Um destes entes é o ser humano como qualquer um de nós; tem as suas alegrias e preocupações, dias bons e piores, gosta de sucessos, não lhe agrada passar fome ou frio, sente a dor como sofrimento e desgraça, sente o êxito como satisfação e realização. O segundo ente, relacionado e interligado com o primeiro, é o ser humano enquanto portador de características raciais, de cultura, de crenças e de convicções. Nenhum ente aparece no seu estado puro e isolado; ambos coexistem influenciando-se reciprocamente.

O problema, e também a dificuldade da minha profissão de repórter, reside no facto de a relação que existe em cada um de nós ser entre o homem como indivíduo e o homem como portador de raça e cultura; esta relação não é estanque (…) Em consequência, cada encontro com o Outro é uma incógnita, um enigma e até, diria mesmo, um mistério.»

«(…) entendemos a viagem como um desafio, um esforço, uma luta, um sacrifício, uma tarefa difícil e um projecto ambicioso. Ao viajar sentimos que algo importante está a acontecer, que participamos em algo de que somos, ao mesmo tempo, testemunhas e criadores; que somos encarregados e responsáveis por algo.

Somos responsáveis pelo caminho. Frequentemente temos a consciência de percorrer um caminho só uma vez na vida e de nunca mais lá voltarmos, consequentemente, não podemos perder nada daquela viagem. Nada deve passar despercebido ou omitido. Vamos ter de relatar tudo, escrever uma história, fazer o nosso exame de consciência. Por isso, quando viajamos estamos concentrados, prestamos muita atenção, ouvimos atentamente, o caminho é tão mais importante quanto o passo nos aproxima mais do Outro. E esta é a nossa razão de viajar. Seríamos capazes de enfrentar as dificuldades, arriscar ou expor-nos ao perigo por outro motivo?»

«Os Outros, vamos repetir mais uma vez, são o espelho onde me vejo e que me faz perceber quem sou. (…)

Como será a sua visão do mundo, a visão que tem dos Outros, por exemplo de mim próprio? De facto, não só ele é o Outro para mim, como também eu sou o Outro para ele.

A primeira coisa que chama a atenção do meu Outro é a cor, a cor da pele. A cor vai ocupar um lugar principal dentro da escala de separação e avaliação das pessoas. É possível viver a vida inteira sem se reflectir se se é negro, amarelo ou branco, mas só enquanto não se ultrapassa a fronteira da nossa zona racial. Depois, imediatamente surge uma tensão, sentimo-nos Outros, cercados por Outros diferentes. Quantas vezes no Uganda me tocaram crianças que, de seguida examinavam atentamente as suas mãos para comprovar se, por acaso, não tinham ficado brancas! O mesmo mecanismo, ou talvez reacção, de classificar e valorizar as pessoas conforme a cor da pele funcionava também comigo. Nos tempos da Guerra Fria, quando dominava a implacável divisão ideológica em dois blocos, o Leste e o Ocidente, esta ordenava aos cidadãos dos dois lados a aversão e mesmo ódios recíprocos; eu, correspondente dum país de Leste, algures na selva do Zaire, acolhia nos braços, com alegria, qualquer pessoa do Ocidente, quer dizer meu “inimigo de classe”, um “imperialista”, só porque aquele “explorador astuto”, aquele “instigador de guerra” era, sobretudo e simplesmente, branco. Devo confessar a vergonha que sentia dessa fraqueza a que não conseguia resistir?»

«Ainda no início dos anos sessenta, quando a televisão estava a dar os seus primeiros passos, Marshall McLuhan propôs o termo “aldeia global”. (…) Aquela expressão de McLuhan, hoje em dia tantas vezes irreflectidamente repetida, acabou por se tornar num dos grandes equívocos da cultura contemporânea. De facto a essência de uma aldeia está na proximidade; todos se conhecem, convivem e partilham da mesma sorte. Contudo, isto não se aplica à sociedade do nosso planeta, que se assemelha mais a uma multidão anónima nalgum grande aeroporto – uma multidão de pessoas a correr, indiferentes e desconhecidas.»

KAPUSCINSKI, Ryszard, 2009 - O Outro, Porto, Campo das Letras

(no próximo fim-de-semana teremos mais um relato, até lá deliciem-se com Kapuscinski)

01/02/10

Janeiro 2010

Notícias da Guiné VI



Já não chove há três meses e o pó tomou conta do ar. Estamos na época fresca… dizem por aqui. Nós só podemos rir-nos face à relatividade das coisas. Para nós o tempo está óptimo – nas noites e madrugada pode baixar aos quinze graus, durante a tarde pode atingir os trinta. À noite, temperatura óptima para dormir, embora peça o lençol. De dia, perfeito para a manga curta e para o fresco dentro do escritório. Verão constante! Difícil imaginar como será a época quente!

Depois das maravilhosas férias em Cabo Verde, o regressa à vida real em Canchungo. Estranho voltar depois do luxo de Cabo Verde. Sei que quem visita o arquipélago, vindo de Portugal, pode levar uma imagem de alguma pobreza, de algum “atraso”, no entanto, para quem vem da Guiné, Cabo Verde é Europa completa – asfalto e paralelos, edifícios altos e modernos, carros ligeiros, luz, muita luz por todo o lado, água canalizada, urbanismo… A praça central da cidade da Praia, capital de Santiago, é lindíssima (de construção portuguesa), cheia de vida, música e cor, e jovens sentados com o seu portátil nas pernas a aproveitar a internet wireless que a câmara municipal disponibiliza! Claro que também há pobreza, mas não tem a menor comparação com os níveis da Guiné. Basta dizer que em toda a ilha de Santiago, a única que visitamos, existe luz e água canalizada (e muitas vezes quente) e que em Bissau, capital da Guiné, não é possível ter esses serviços a não ser por iniciativa privada. Sempre que falamos com cabo-verdianos e contamos que vivemos na Guiné, sem luz nem água canalizada, geramos sentimentos de pena por nós… Acho que sentiam pena por estarmos a viver em África… Porque eles não… eles vivem na EuroÁfrica!! :D A diferença que faz não terem tido guerra e terem sido privilegiados no tempo colonial com a formação de quadros técnicos que hoje dirigem, sem grandes problemas, o seu próprio país!

Mas também não achamos ser necessário tanta pena de nós! É verdade que no dia do regresso a Bissau estávamos um pouco “deprimidos” com a volta aos banhos de água fria e de caneco, à programação da vida e do trabalho em função dos horários da luz (já pensaram como será tomar banho de caneco às escuras?), às inevitáveis baratas (ou um ratito perdido) com que por vezes somos surpreendidos… Mas bastou chegar a Canchungo para nos sentirmos “em casa” e felizes por voltarmos a estar com aqueles que também já são “os nossos”.

O trabalho cá esperava por nós! Entramos no segundo trimestre cheios de actividades e novas tarefas. O Miguel que o diga, que não tem parado um minuto, numa primeira visita a todas as escolas das missões católicas na Diocese de Bissau (que engloba as regiões de Cacheu, Oio, Biombo, Bolama e sector autónomo de Bissau), a fim de avaliar o seu modo de funcionamento e iniciar a implementação de um manual de procedimentos comum a todas escolas da Guiné. É um trabalho muito engraçado, porque lhe permite um contacto muito directo com a realidade educativa do país e com os muitos estrangeiros a operar na Guiné, no entanto, é também cansativo pois todos os dias viaja entre uma e outra missão, anda sempre com a casa às costas e, sobretudo, só estamos juntos ao fim-de-semana. E assim o tempo custa mais a passar, é uma realidade! L

Eu cá ando entre observações de aulas de manhã, preparação de sessões de formação, correcção de provas, relatórios e outro trabalho “administrativo” à tarde. Coisas que eu gosto de fazer, não me posso queixar!

Já visitamos a escola de Bidjope para reunir com a comunidade e lhe darmos a boa notícia de que há um grupo em Portugal que, sensibilizado com a falta de condições da escola (o que a obrigaria a parar as aulas mal a chuva começasse) mobilizou esforços para poder financiar uma escola de construção definitiva para a comunidade. Ficaram muito felizes! Estavam reunidos os homens grandes e as mulheres grandes da comunidade (os que já passaram pelos ritos de iniciação), os jovens, os alunos, o professor, e todos, depois de algumas intervenções individuais, se mostraram muito agradecidos pelo apoio disponibilizado. A comunidade ficou de encontrar um terreno livre e adequado para o efeito, prepará-lo para a construção e começar a fazer os tijolos. A escola já tem uma planta – terá duas salas de aula, um gabinete para o director e um pequeno armazém/despensa. Quando as paredes já estiverem levantadas e as traves de madeira estiverem colocadas nós iremos verificar tudo e comprar as chapas de zinco para o telhado, bem como os pregos para as colocar. Também nos preocupamos com a iluminação, portanto, pedimos que se fizesse duas aberturas no telhado, onde colocaremos uma espécie de chapa de plástico transparente, criando uma clarabóia.

Parece que é um sonho que está prestes a tornar-se realidade. Só falta mesmo reunir o dinheiro necessário para a construção. A recolha está a decorrer! Vamos a isso, antes que a chuva comece e a escola tenha de parar!

Estamos cada vez mais habituados à nossa nova vida e é engraçado a forma como reagimos às coisas. Falávamos um dia destes sobre isto - já não nos espanta nada ver as galinhas, os porcos, as cabras e vacas no meio da rua, passar por eles e ter de os contornar, esperar que eles passem, quando vamos de carro, para não criar nenhum acidente, mas ficamos completamente eufóricos quando percebemos que em Bissau abriu uma confeitaria! Quando é que a abertura de uma confeitaria se torna um grande momento nacional aí em Portugal? Pois digo-vos, aqui tem sido uma lufada de ar fresco! É que é mesmo uma confeitaria portuguesa (o padeiro é português)… podemos pedir torradas, tostas mistas… e bolos, muitos bolos!! Eu já cedi à tentação da bola de Berlim e acho que nunca nenhuma me soube tão bem! :D Em Bissau não se fala de outra coisa, ou melhor, entre os brancos não se fala de outra coisa… Ainda que já se vejam alguns guineenses a frequentá-la. São os ricos…

Temos reflectido um pouco sobre a inexistência de uma classe média na Guiné-Bissau, segundo nós, o grande entrave ao desenvolvimento. Pelo que nos temos apercebido, quer por conversas, quer por leituras, este é um problema económico grave e que tem a sua origem em tradições e ligações económicas que já foram abandonadas na Europa há vários anos. Explico-me: aqui existe o conceito de família alargada, com laços muito apertados e papéis muito bem definidos. Aquele da família que ascende, que possui alguma coisa, tem, obrigatoriamente, que partilhar com os outros. Desta forma, podemos ver jovens que estudaram fora do país, que encontraram um emprego razoável, a ganhar um ordenado considerado bastante bom (para a realidade local) que lhe permitiria quebrar o ciclo da pobreza familiar e criar uma nova estrutura familiar de classe média, que sobreviveria do seu ordenado, lhe permitiria juntar para a educação dos filhos ou para o seu futuro e ainda daria para alguns luxos, e vivem aflitos porque pagam a educação dos irmãos, sustentam os pais que estão velhos e não têm qualquer tipo de rendimento (não existe o estado providência), ainda tomam conta dos filhos dos tios ou das irmãs… Incrível como as redes familiares de solidariedade que permitem que África vá sobrevivendo são as mesmas que não permitem a criação de uma classe média, mais rica, que seja motor de desenvolvimento do país. Todos vão ficando nivelados por baixo… Faz-nos pensar!

Claro que estas questões estão dependentes da elevada taxa de natalidade, do casamento precoce, da prática da poligamia, da inexistência de um regime de segurança social que crie alguma auto-suficiência na velhice e/ou na doença… aqueles factores que fomos estudando na escola, característicos do “antigamente”.

Não é fácil ser-se guineense na actualidade, sobretudo porque a – aparente – instabilidade política afasta a ajuda internacional, afugenta os investidores… poderia parecer um cenário sem esperança. Mas não é esse o ambiente que se vive todos os dias!

Apesar de tudo, as pessoas são felizes, riem-se, divertem-se, cantam e dançam… mesmo na morte, que para nós é silêncio e recolhimento. Não há dia em que não haja “choro” nesta terra - música, comida e festa em nome de quem parte… para que a sua alma possa descansar em paz. Não se faz para jovens e crianças, para estas há pena, há o sentimento da perda antes do tempo. Faz-se para o velho, para o que já viveu e agora deve repousar em paz. De realçar que a esperança média de vida está pelos quarenta e dois anos, neste país!

Viver com o Cirilo tem-se revelado um bem enorme – consegue congregar o melhor que a Guiné tem, com um conhecimento da realidade do “mundo ocidental”, uma vez que viveu no Brasil cinco anos, enquanto tirou a licenciatura em Língua e Literatura Portuguesa. Ele é um grande elo de ligação entre nós e a realidade desconhecida da Guiné. Tem sido uma ajuda preciosa na nossa compreensão da realidade, sendo que também compreende os nossos comentários, as nossas estranhezas e interpretações da realidade. Por vezes, também nos ajuda a colocar as coisas numa nova perspectiva. Às vezes consegue mesmo ser desarmante. Conto um exemplo. Esta semana, estando os dois no carro na volta de uma visita de acompanhamento e observação de aulas de uma escola de tabanca, eu desabafava sobre alguns “cansaços” normais do dia-a-dia. Numa das vezes, confessei-me cansada de andar sempre a ir buscar água… Ele olhou-me com um ar muito espantado e disse “mas tu nunca foste buscar água”… Ui, que até doeu! Percebi bem o que ele queria dizer… Na verdade, eu nunca “fui buscar água”, como quase toda a população tem de fazer – ir com baldes ou outro tipo de bidões, a pé, à fonte de água mais próxima, fazendo por vezes uma grande distância, para trazer um pouco de água para o dia-a-dia da casa. Mulheres e crianças, principalmente. Aquela imagem que todos temos da África que transporta água à cabeça. Na verdade, eu estendo uma mangueira enorme, que atravessa as duas vias da avenida central de Canchungo, e vai ligar à torneira da casa dos padres, que fica em frente à nossa casa, e encho os três bidões enormes que nos vão fornecer água durante quinze dias. Na verdade, durante esses quinze dias eu não tenho que sair da minha casa para me fornecer de água. Mas na verdade, todos os dias, várias vezes ao dia, tenho de andar de baldes e canecos de trás para a frente para tirar a água dos bidões e servir-me dela durante as utilizações habituais… Percebo o Cirilo… de facto, como me posso queixar? Eu não vou nunca “buscar” água… Mas sei que ele também percebe que para mim, de cada vez que vou ao bidão com um balde para poder tomar banho, estou a ir “buscar” água… Até agora, para mim, a água canalizada sempre foi um dado adquirido e, a maior parte das vezes, mesmo sem grande sentimento de gratidão.

Apesar de todas estas compreensões mútuas, não pude deixar de me sentir um pouco “culpada” por me estar a queixar, sendo que sou muito beneficiada em toda esta situação.

Não são nada fáceis estes equilíbrios!

Ontem fui a uma escola observar uma aula. Cinquenta e seis alunos sentados no chão, em troncos de árvore ou pequenos banquinhos de madeira, a ouvir uma lição quase toda teórica e oral. Não há manuais, apenas um pedaço da parede pintada com tinta preta a servir de quadro onde os professores passam a lição, que os alunos passarão para o seu caderno. Felizmente há cadernos! São uns heróis estes professores e estes alunos! Não sei se faríamos muito melhor se não tivéssemos materiais e professores com o 9º ano de escolaridade…

Hoje é dia 20 de Janeiro, feriado na Guiné-Bissau, dia do assassinato de Amílcar Cabral, tornado dia dos heróis nacionais (em Moçambique acontece o mesmo – o dia 3 de Fevereiro, dia do assassinato de Eduardo Mondlane, também é celebrado como dia dos heróis moçambicanos). Aproveitamos para dar um passeio até uma das praias mais famosas da Guiné – a praia de Varela. Foi um passeio fantástico! Apesar de ficarmos com o corpo todo moído devido aos solavancos de muitos quilómetros em estrada de terra batida, valeu bem a pena! Sol, praia, mar, vaquinhas a pastar (ou a “areiar”… não sei bem que termo usar)… tomamos muitos banhos, jogamos cartas (o Cirilo já sabe jogar continental, mamã :D), conversamos! Foi um dia descontraído e muito bem passado! Viva o Amílcar Cabral!

Amanhã, depois de uma manhã em observações, vamos para Bissau, onde me encontrarei com o Miguel (ainda às voltas com as Missões). Decerto terei net e poderei enviar-vos mais esta partilha.

Obrigada por continuarem a manter-se desse lado!

Abraço apertado,