09/02/10

Excertos do livro “O Outro”, de Ryszard Kapuscinski

Este é um autor de quem gostamos muito. O seu livro “Ébano. Febre Africana” (oferecido pelo Nuno Olaio, um amigo que, curiosamente nunca visitou a África Negra) é um daqueles livros que nos deixa o sentimento de “era mesmo isto que eu queria dizer”… Recomenda-se a todos os que já viveram em África – sem dúvida que se vão reconhecer numa ou noutra passagem – e a todos os que gostavam de a visitar – é um belo ensinamento sobre como visitar e viver África (do ponto de vista de um Europeu, claro).

Estive a ler o seu livro “O Outro”, uma compilação de escritos e conferências deste jornalista viajante, onde se vai reflectindo sobre esse grande acontecimento das nossas vidas que é o conhecimento, o encontro com vários “outros” ao longo da nossa vida. Uns mais parecidos connosco, outros mais diferentes… Todos comportam em si um desafio, e é nele que está a beleza do caminho a percorrer.

Deixamos alguns excertos que nos tocaram mais, por uma razão ou por outra. Decerto é um tema inquietante para quem está a viver uma experiência como a nossa, rodeados que estamos de “outros”, muito diferentes de nós, sendo que somos nós os “desterrados”, o elemento estranho na paisagem. É estranho sentir-me branca tantas vezes… aí nunca penso nisso, e aqui não consigo dar um passo sem que não mo lembrem. E afinal, por que razão estamos nós aqui? O que estamos aqui a fazer? Qual a nossa atitude perante este mundo que nos acolhe? A arrogância de quem se pensa pertencer a um mundo civilizado e que tem uma missão civilizadora? Ou a atitude de abertura de quem encontra um nível de paridade entre culturas, tentando aproveitar os pontos mais fortes e partilhar as dores de cada uma? Não há margem para dúvidas que nos situamos na segunda posição, mas também sabemos que é inevitável cruzarmos com pessoas que adoptam a primeira postura. E é revoltante, acreditem que é revoltante.

O “outro” é sempre uma novidade, e aqui é mesmo um “outro” muito diferente, uma incógnita que vamos tentando desvendar, mas que, sabemos, permanecerá sempre uma descoberta para nós.

Deixamo-vos, então, com alguns excertos do livro (que iremos continuar nos próximos tempos) - que o reflectirmos sobre eles possa ajudar-nos a pensar um pouco também sobre cada um de nós:

«Cada uma das pessoas encontradas pelos caminhos do mundo comporta em si dois entes; trata-se de uma dualidade de separação geralmente difícil, de que nem sempre nos apercebemos. Um destes entes é o ser humano como qualquer um de nós; tem as suas alegrias e preocupações, dias bons e piores, gosta de sucessos, não lhe agrada passar fome ou frio, sente a dor como sofrimento e desgraça, sente o êxito como satisfação e realização. O segundo ente, relacionado e interligado com o primeiro, é o ser humano enquanto portador de características raciais, de cultura, de crenças e de convicções. Nenhum ente aparece no seu estado puro e isolado; ambos coexistem influenciando-se reciprocamente.

O problema, e também a dificuldade da minha profissão de repórter, reside no facto de a relação que existe em cada um de nós ser entre o homem como indivíduo e o homem como portador de raça e cultura; esta relação não é estanque (…) Em consequência, cada encontro com o Outro é uma incógnita, um enigma e até, diria mesmo, um mistério.»

«(…) entendemos a viagem como um desafio, um esforço, uma luta, um sacrifício, uma tarefa difícil e um projecto ambicioso. Ao viajar sentimos que algo importante está a acontecer, que participamos em algo de que somos, ao mesmo tempo, testemunhas e criadores; que somos encarregados e responsáveis por algo.

Somos responsáveis pelo caminho. Frequentemente temos a consciência de percorrer um caminho só uma vez na vida e de nunca mais lá voltarmos, consequentemente, não podemos perder nada daquela viagem. Nada deve passar despercebido ou omitido. Vamos ter de relatar tudo, escrever uma história, fazer o nosso exame de consciência. Por isso, quando viajamos estamos concentrados, prestamos muita atenção, ouvimos atentamente, o caminho é tão mais importante quanto o passo nos aproxima mais do Outro. E esta é a nossa razão de viajar. Seríamos capazes de enfrentar as dificuldades, arriscar ou expor-nos ao perigo por outro motivo?»

«Os Outros, vamos repetir mais uma vez, são o espelho onde me vejo e que me faz perceber quem sou. (…)

Como será a sua visão do mundo, a visão que tem dos Outros, por exemplo de mim próprio? De facto, não só ele é o Outro para mim, como também eu sou o Outro para ele.

A primeira coisa que chama a atenção do meu Outro é a cor, a cor da pele. A cor vai ocupar um lugar principal dentro da escala de separação e avaliação das pessoas. É possível viver a vida inteira sem se reflectir se se é negro, amarelo ou branco, mas só enquanto não se ultrapassa a fronteira da nossa zona racial. Depois, imediatamente surge uma tensão, sentimo-nos Outros, cercados por Outros diferentes. Quantas vezes no Uganda me tocaram crianças que, de seguida examinavam atentamente as suas mãos para comprovar se, por acaso, não tinham ficado brancas! O mesmo mecanismo, ou talvez reacção, de classificar e valorizar as pessoas conforme a cor da pele funcionava também comigo. Nos tempos da Guerra Fria, quando dominava a implacável divisão ideológica em dois blocos, o Leste e o Ocidente, esta ordenava aos cidadãos dos dois lados a aversão e mesmo ódios recíprocos; eu, correspondente dum país de Leste, algures na selva do Zaire, acolhia nos braços, com alegria, qualquer pessoa do Ocidente, quer dizer meu “inimigo de classe”, um “imperialista”, só porque aquele “explorador astuto”, aquele “instigador de guerra” era, sobretudo e simplesmente, branco. Devo confessar a vergonha que sentia dessa fraqueza a que não conseguia resistir?»

«Ainda no início dos anos sessenta, quando a televisão estava a dar os seus primeiros passos, Marshall McLuhan propôs o termo “aldeia global”. (…) Aquela expressão de McLuhan, hoje em dia tantas vezes irreflectidamente repetida, acabou por se tornar num dos grandes equívocos da cultura contemporânea. De facto a essência de uma aldeia está na proximidade; todos se conhecem, convivem e partilham da mesma sorte. Contudo, isto não se aplica à sociedade do nosso planeta, que se assemelha mais a uma multidão anónima nalgum grande aeroporto – uma multidão de pessoas a correr, indiferentes e desconhecidas.»

KAPUSCINSKI, Ryszard, 2009 - O Outro, Porto, Campo das Letras

(no próximo fim-de-semana teremos mais um relato, até lá deliciem-se com Kapuscinski)

1 comentário:

Tania Pinto disse...

Acho que nunca nenhum verificou se a minha "tinta" saía mas, num jogo de futebol, tive uma criança a puxar-me os pêlos do braço e a ver os poros da pele a levantar! É demais... :D Em Angola, numa viagem de camião, com Afros a cantar ao despique ao pôr-do-sol, apeteceu-me mudar de cor e desaparecer, conscientemente, naquela vida que estava a sair de cada um deles e a pairar no espaço comum que nós ocupávamos...
Fico mesmo feliz com a leitura das vossas aventuras!