19/02/10

Notícias da Guiné VII


Então, ainda continuam por aí? Os comentários diminuíram… talvez já tenham deixado de sentir saudades nossas, quem sabe! :D Ou então já não escrevemos nada de novo :D

Esperamos que tenham gostado dos excertos do livro “O outro” e que tenha sido uma base para algumas reflexões sobre os outros que passam nas nossas vidas!

Este mês foi um mês bastante normal (por aqui até se diz “tudo normal, como na Guiné”) – trabalho, trabalho, trabalho e Carnaval!

Quanto ao trabalho este foi um mês puxado com as visitas todas às escolas das tabancas, mas também gratificante pelo contacto mais directo com os professores e as crianças. Faz-nos perceber melhor a verdadeira realidade do interior da Guiné, bem diferente da realidade de Bissau.

Este contacto mais directo tem-nos obrigado a reflectir mais profundamente sobre a questão linguística.

O nosso projecto é de promoção e divulgação da língua portuguesa. Tudo estaria bem se esta não se tornasse numa questão fundamentalista, bastante marcada por pressões políticas e económicas vindas do mundo lusófono. Claro que o português é importante num país cuja língua falada por todos é uma língua apenas oral, sem estrutura escrita. Claro que a Guiné poderia beneficiar com as publicações já existentes em língua portuguesa – de Portugal, dos PALOP e, sobretudo, do Brasil -, e também é claro que o português será a língua da ciência pois o crioulo não tem termos técnicos. Mas… de que vale impor o português se, de facto, quase ninguém o fala? É deprimente ir assistir a aulas da primária em que os professores falam português o tempo todo (talvez por eu estar presente, bem o sei), achando que estão a cumprir muito bem as orientações superiores, quando os alunos não percebem nada porque não conhecem a língua em que a aula está a ser dada! Eu própria, que me considero uma boa aluna, dificilmente teria aprendido a ler e a escrever, com sete anos, se as aulas me fossem dadas em chinês!! Já imaginaram o que é aprender a ler e a escrever (já por si só duas técnicas difíceis de aprender) numa língua que nada significa para nós? Só existem significantes e nada de significados… Deve ser desesperante! É necessário uma reflexão séria sobre o que interessa – a língua em si ou a passagem de conteúdos?

Eu, por mim, sou muito mais a favor do bilinguismo – será a única forma de fazer uma passagem natural do crioulo (ou da língua materna) para o português. Um pouco como começamos a fazer com o inglês na escola primária em Portugal.

E a Guiné ainda tem o problema da afirmação do Francês dos países aqui à volta. Muitas vezes encontro pessoas que falam crioulo e francês em vez do português! Viva a verdadeira confusão!

Muitas vezes, quando vou ao mercado, começo por falar português em casa, crioulo na banca de alguma “mindjer garandi” que não fala português, francês com o costureiro que é da Guiné-Conakry e com a senhora onde vamos buscar comida, senegalesa, e termino a falar Inglês com o vizinho de cima que é da Gâmbia. Como já tinha referido… é uma babel!

O nosso próprio prédio é uma experiência fascinante – portugueses, guineenses, mouros da Mauritânia, gambianos, senegaleses…

Por falar nisso, estou a falar crioulo que é uma maravilha! :D Afinal é a língua do país onde estou… porque não o haveria de aprender? Porque se acha que não tem cabimento e o que é importante é falar o português? Ai estes novos colonialismos!!!

O mais importante que eu posso deixar a estes professores são, de facto, as técnicas didácticas e, também é verdade, o desenvolvimento no seu uso do português, mas não tenho ilusões que o português se torne a verdadeira língua falada por todos os guineenses no seu quotidiano. E, para falar a verdade, nem sei se teria lógica!

Tenho pena de não conhecer melhor as experiências espanholas e italianas sobre o desenvolvimento paralelo e manutenção dos dialectos e da língua nacional. Pelo que percebi da vivência com italianos, em Moçambique, e agora com espanhóis, também não foi algo pacífico. Muitos espanhóis ainda hoje se apresentam como “catalães” ou “galegos”, sendo que a questão linguística é uma marca muito forte neste sentimento de “não pertença”.

E voltamos ao mesmo tema da minha tese de mestrado… Como se forma uma identidade nacional em países como estes, com uma história tão retalhada, tão fragmentada, repletos de etnias diferentes? O que os une de forma a que se possam sentir guineenses? Uma só língua? Não! Uma só religião? Não! Costumes e raízes comuns? Não!...

Estes novos países não têm mesmo uma tarefa fácil… Só de me lembrar que nós somos “portugueses” desde 1143 (pelo menos no papel pois as identidades precisam de tempo para se criarem)… são apenas mais 900 anos! E nós, países do Norte, queremos exigir aos países africanos que façam o que nós fizemos em séculos (sim, porque somos herdeiros directos dos gregos, romanos, etc…) em apenas algumas décadas! E de uma forma imposta, exportando um modelo que nada tem a ver com as realidades africanas…

Bem, deixo-me de exaltações :D

Também não nos têm faltado momentos de lazer. Em Canchungo, no início do mês, assistimos à missa nova de um novo padre, filho de Canchungo. Foi uma cerimónia muito bonita, um misto de religião tradicional com os rituais católicos. Saímos da casa da família do novo padre, em procissão. Ele trazia vestidas as vestes tradicionais e pelo caminho iam elementos representando o trabalho agrícola, fundador de toda a sociedade africana, os familiares já falecidos, a fecundidade. Chegados à igreja, vestiu as vestes do ritual católico e presidiu à eucaristia, animada por cânticos emotivos, por danças, procissões de oferendas, etc. De um sincretismo incrível! Estavam presentes representantes da igreja muçulmana e da igreja evangélica, os chefes da religião tradicional, o régulo de Canchungo, o Administrador da região… A tradição e a modernidade, as diversas crenças, tudo reunido num dia de festa comum para os filhos de Canchungo. São momentos de um grande ensinamento para nós!

Recebemos, entretanto, duas novas colegas na FEC, com a abertura de um novo projecto ligado à Educação de Infância. Outra realidade esquecida, até agora, na Guiné-Bissau, e que poderá, se atingir bons níveis de qualidade, ajudar a resolver alguns graves problemas da língua e da educação na Guiné-Bissau. Veremos o que vai acontecer! É o mal de se trabalhar em educação – os resultados nunca se conseguem medir no curto prazo!

Uma destas colegas passou uns dias em nossa casa para conhecer melhor a realidade dos Jardins do interior e então andamos a fazer algumas visitas – umas mais educativas, outras mais turísticas. Só nesta altura me apercebi que desde que chegamos (e já lá vão quatro meses) nunca mais tínhamos ido ver o braço de mar que entra aqui em Canchungo! Que trengos… só vemos trabalho à frente e até nos esquecemos das belezas da terra! Claro que o fomos apresentar às visitas, aproveitando para usufruir da vista e relaxar um pouco.

Neste último fim-de-semana fui para Catió, capital da província de Tombalí. É apenas a 300 Kms de Bissau mas parece uma viagem ao fim do mundo.

Parti de Canchungo para Bafatá na Sexta-feira (a Guiné é tão pequena que só nesta viagem passei por quatro regiões diferentes – Cacheu, Biombo, Oio e Bafatá) para me encontrar com mais duas amigas com quem iria partir para a aventura no fim-de-semana – a Ana e a Catarina. Foi uma noite muito fixe, tipo “campos de férias” – dormimos as três no mesmo quarto, colchão no chão, e conversamos até às duas da manhã! Estão a ver o filme! O Miguel diz que nós parecemos saídas de um livro da colecção “As Gémeas” EhEhEh!

No Sábado partimos às sete horas da manhã com o objectivo de chegar a Catió, no ponta sul do país. Bem… foi uma viagem interminável! Fomos de Candonga (aquelas carrinhas tipo HIACE que levam tudo e mais alguma coisa dentro) e demoramos sete horas na viagem. Pelo caminho paramos em algumas “estações de serviço” para a costumeira “ida ao mato” e para comprar laranjas, bananas ou mancarra. Foi incrível! Passamos por três regiões diferentes (Bafatá, Quínara e Tombalí), com estradas inacreditáveis de terra batida repletas de verdadeiras crateras impossíveis de contornar. Mas bonito, muito bonito! E tivemos conversa para todo o tempo da viagem, o que ainda é mais admirável!

Em Catió, a Ana tinha trabalho mas eu e a Catarina aproveitamos para conhecer a cidade e passear um pouco. O Pe. Maurício, um dos padres da missão católica que nos recebeu, simpatiquíssimo, levou-nos a conhecer alguns locais bonitos e até o braço de mar que passa por ali. E, à noite, fez-nos uma carbonara que só por si já fazia valer a pena a viagem! :D

No Domingo de manhã foi um S. João para regressarmos – como já era o Domingo gordo, não havia transportes públicos a funcionar, excepto a candonga das sete da manhã a qual não podíamos apanhar pois a Ana tinha de estar presente numa sessão de formação das oito às nove. Bem, confiamos na sorte (e eu em Deus!) e ficamos à espera de outra solução. O pe. Maurício deu-nos um gozo valente e só dizia: “Estas raparigas têm um programa muito estranho!”. Na verdade, quem faz tantas horas de viagem para regressar na manhã seguinte? Entretanto eu fui à Missa e deixei a Catarina a procurar uma solução. E não é que se encontrou mesmo? Foi a mais hilariante possível! A região de Catió, como todas as outras, tinha uma comissão de festas para participar no Carnaval em Bissau e portanto partiam no Domingo, por volta das nove para Bissau… e lá nos deram boleia! Conclusão – viemos as três na candonga oficial do Carnaval de Catió, a abarrotar de gente quer dentro quer por cima (havia sofás e tudo no tejadilho da carrinha!), a apanhar com sete horas de assobios, batuques, megafone, palmas… íamos ficando surdas mas… chegamos a Bissau sãs e salvas (eu ainda ouço batuques constantes dentro da cabeça!). Melhor, as estradas de Bissau foram fechadas para os desfiles e nós iríamos ter fazer uns quilómetros a pé, mas como fomos na caravana oficial de Catió, pudemos passar até à Praça, mesmo onde queríamos ficar! Sentimo-nos as rainhas do Carnaval de Catió! :D

O Carnaval em Bissau foi uma agradável surpresa – é muito animado, muito organizado, muito genuíno. Participam grupos das diferentes regiões, consequentemente de diferentes etnias, com diferentes trajes típicos, músicas, e danças. Foi mesmo muito Afro! :D

E já estamos quase em Março… o tempo voa mesmo e o calor começa a apertar, de novo! Este próximo mês será de trabalho louco – imensas formações (sessões de Pedagogia, Língua Portuguesa e às Missões Católicas), a segunda observação aos professores das escolas das tabancas, respectivos relatórios, avaliação intermédia do projecto… digamos que as férias da Páscoa serão bem merecidas! :D Para iniciar bem o mês teremos os anos do Miguel, logo no dia 2.

Ah! Já agora, faço o ponto de situação do projecto da escola de Bidjope – a recolha ainda continua mas estamos a tentar fechar até à primeira semana de Março. As obras já começaram – a comunidade escolheu o terreno, já o limpou e preparou para a construção e estão na fase final de execução dos tijolos. A fase seguinte será construir as traves de madeira, também trabalho feito pela comunidade, e nessa altura nós compraremos o zinco e os pregos para realizarem a cobertura. O objectivo é concluir a construção antes das chuvas começarem, em Maio. Pela primeira vez, estas crianças poderão ter um ano lectivo normal, sem a interrupção com a época das chuvas. Não é incrível? Quem ainda quiser contribuir (e ainda seria necessário algum dinheirito) pode fazê-lo para o seguinte NIB 0038 0024 00485370771 26. Para mais informações, podem ainda consultar o blog criado por alguns alunos e amigos nossos – http://a-ponte-amiga.blogspot.com.

E bem, despedimo-nos com um abraço apertado e um até breve.

Temos saudades do Porto!


5 comentários:

rvilaverde disse...

Boas! Contente por tudo continuar a correr bem! Que tal criarem um perfil no facebook? Seria uma forma muito eficaz de nos matermos "próximos". Bjs e abraços!

Amor à Camisola disse...

Realmente vir aqui ler-vos é uma experiência do "carago"!

Um outro mundo, verdadeiramente, mas que nos faz perceber que as diferenças não podem ser razão para afastamento, bem pelo contrário.

Ainda bem que tudo corre pelo melhor e continuamos a fazer força para que assim seja.

Por aqui muita chuvinha e mau tempo. E os resto... tudo normal, como em Portugal.

Beijo e abraço fortes!

João

Cris disse...

Que aventuras fantásticas! A nossa vidinha por aqui, até parece insignificante perante tanta aventura...e, já agora, o Porto também tem saudades vossas!

Bjs gds.
Cristina Barbosa (MBA)

Tania Pinto disse...

Acho a ideia do Facebook mesmo muito boa!
As línguas/dialectos são um problema... Mas claro que vocês devem saber crioulo, para explicarem como há vantagens em saber uma outra língua que mais gente entende... :D Por acaso, da pouca experiência que tenho, parece-me que a maior vantagem está em os nativos saberem uma língua e o dialecto local (como no Gurué)... Tive o mesmo problema na sala de aula em Angola... Foi desesperante não ter maneira de comunicar verbalmente com aquelas crianças...

Lurdes Silva disse...

Olá, deve estar a ser realmente uma experiência fantástica, espero que consigam fazer a escola a tempo, eu fiz a minha "pequena" parte, mas foi com muito carinho.
Por aqui o tempo vai horrivel, não pára a chuva, vento e trovoada, os meus cães ficam cheios de medo, lol. Mas vai passar, depois segue para essas bandas, espero que não tão forte como aqui, mas a chuva também faz falta. Continuação de boa estadia, e continue a escrever estes belos textos que adoro ler, e claro que as fotos também valem a pena ver.
Bem, quanto a mim, com o final do curso, cá continuo à procura de emprego, a maioria de nós está ainda desempregada, mas não perdemos a esperança. Tudo de bom e até breve, bjos doces