02/01/10

31 de Dezembro de 2009

O mês de Dezembro foi um mês estranho… ou não fosse ele o mês do Natal… mas começo pelo princípio.

No dia 5 de Dezembro a diocese de Bissau, à qual Canchungo pertence (a Guiné tem duas dioceses – Bissau e Bafatá), realizou a sua peregrinação anual a Cacheu, onde existe a que dizem ser a primeira igreja dos portugueses na costa ocidental africana. Foi um momento muito bonito com missa campal, cânticos, danças. Um momento de louvor e comunhão que me fez bem, uma vez que ainda não tinha tido oportunidade de participar em nada da igreja aqui (o trabalho ao fim-de-semana não ajuda neste ponto).

No final tive um encontro muito feliz com uma colega, leiga consagrada, que não via há mais de cinco anos e que conheci em Salamanca, num encontro ibérico de dehonianos. Nessa altura eu acabava de regressar de Moçambique, do primeiro ano, 2003, e pensava fazer da missão o resto da minha vida, e ela, missionária que tinha estado também no Gurúè, como eu, pensava com os seus setenta anos deixar-se de vez das aventuras africanas e ficar pelo Porto, numa casa de apoio a jovens estudantes. Éramos ambas representantes de “braços” da família dehoniana – eu dos leigos voluntários e ela dos leigos consagrados.

Cinco anos depois… quem diria que nos iríamos encontrar em Cacheu, na Guiné?! Parece que a vida trocou as voltas às duas… :D Eu, casada, apesar de continuar “em missão”; e ela, apesar dos seus setenta e cinco anos, na Guiné há quatro anos tendo vindo apenas substituir uma colega por três meses… As voltas da vida! Têm o seu interesse, não haja dúvida!

A nível de trabalho o mês ficou marcado pelo arranque dos acompanhamentos semanais aos formadores que vou coordenar e das formações aos professores. Foi um mês intenso que exigiu muita preparação minha e grande empenho do meu grupo de formadores. Até porque os imprevistos… Imaginem, tínhamos previstas seis sessões de formação – três de português e três de pedagogia – o que implicaria um grande trabalho de preparação dos formadores. Se bem se lembram, eu tenho um grupo de onze formadores que dá estas formações em cinco turmas diferentes, perfazendo setenta e cinco professores na região que coordeno, Cacheu. No início do mês de Dezembro, o ministério comunicou-nos que as nossas formações das férias do Natal teriam de ser adiadas pois a Unicef propôs-se ministrar formação também naquelas datas… e como a Unicef é a Unicef… lá tivemos nós de ceder. E abrandamos o ritmo da preparação, naturalmente… na semana anterior às férias, o ministério contacta-nos a dizer que afinal a Unicef não avança e temos de avançar nós! Foi um stress… Andamos nós a “pregar” a necessidade da planificação, da organização, e vem a Unicef e faz uma coisa destas! Ficamos mesmo furiosos! E lá tivemos nós que, numa semana, agarrar as formações de pedagogia (de Português acabamos por aceitar fazer apenas uma, a bem da qualidade), apenas possível devido ao empenho dos nossos formadores que passaram tardes inteiras lá no escritório a preparar tudo.

Para além da preparação das sessões de formação, também estou encarregue de tratar de toda a logística – marcar as salas nos diferentes locais, organizar os materiais da sessão para os setenta e cinco professores-formandos. Acreditem que dá o seu trabalho!

Por último, assisti às sessões de formação propriamente ditas pois o plano de acompanhamento e formação dos nossos formadores pressupõe que a supervisora assista a três sessões de cada formador no sentido de melhor os poder orientar. Foi a minha primeira experiência nesta função e digo-vos que, para mim é um sufoco! É a mesma sensação de quando vou assistir a um concerto e conheço as peças todas e só me apetece cantar também… :D Fiz um esforço muito grande para não intervir durante as sessões!

Em Janeiro começarei a assistir às aulas dos professores que estão a ser alvo das nossas formações. O projecto prevê que eu acompanhe vinte e cinco dos setenta e cinco professores-alvo assistindo a três das suas aulas. Em suma, de Janeiro a Junho não farei mais nada, durante as manhãs, a não ser ir às escolas assistir a aulas…

Durante uma das sessões de formação a que assisti, fiquei muito surpreendida com uma constatação – a maior parte dos professores que estão a fazer formação connosco nunca tinha visto um mapa da Guiné-Bissau. Que estranho! Sabem o nome das regiões de trás para a frente, mas não sabem apontar nenhuma no mapa… Se nunca o tinham visto… Como pensar a terra onde habitamos se nem conhecemos a forma que ela tem? Nem a sua relação com o resto do mundo? Não consigo imaginar como será…

O mais grave é que estamos a falar dos professores, e não dos alunos…

Mas como poderiam conhecer um mapa se as escolas não os têm? Se eles próprios aprenderam sem livros ou qualquer outro tipo de material?

Sei que já tenho alguns anos de experiência disto, mas acho que nunca irei deixar de me surpreender!

Neste sentido, a FEC tem um papel importantíssimo, uma vez que distribui um armário pedagógico a cada escola do projecto com mapas, cartazes, esqueletos, dicionários, gramáticas e outros materiais que poderão constituir uma mini-biblioteca (ou centro de recursos) para cada escola. E, não menos importante, nas nossas formações, ensinamos como usar cada um dos materiais para tirar proveito deles na sala de aula.

Um destes dias, quando andávamos lá por casa com os cinco mapas da Guiné para os nossos formadores levarem para as suas sessões, o Miguel teve uma experiência muito bonita e curiosa. O Miguel, como já vos disse, conquistou aqui a pequenada com as suas brincadeiras, a sua gargalhada, os seus rebuçados… Um dos seus mais fiéis amigos, é o pequeno Uyé, que terá cerca de seis anos e não fala uma palavra de português. Aliás, à minha frente, não fala uma palavra de língua nenhuma… Quando está sozinho com o Miguel desata a falar numa língua incompreensível, o que não os impede de terem grandes conversas. É fantásticos ouvi-los da janela do escritório – o Uyé com palavras estranhas e muitos gestos, e o Miguel num português meio acrioulado e também muitos gestos… e podem passar nisto um tempo infindável!

Pelo que pensamos, o Uyé será muçulmano e frequentará uma escola corânica, pelo menos é o que as suas vestes e linguagem deixam adivinhar. Tem um olhar tão doce…

Mas estou a afastar-me do que ia contar… numa das visitas do Uyé, o Miguel foi buscar um mapa da Guiné e mostrou-lho… haviam de ver o seu olhar espantado… o que terá ele percebido do que estava a ver? O Miguel apontava e dizia “Mapa di Guiné”, “Guiné”! Depois mostrou-lhe Canchungo, “aqui, aqui, Canchungo”! E o Uyé a tentar repetir, sem conseguir, o nome da sua terra… Foi mesmo um momento bonito, de descoberta e fascínio.

O curioso foi que ele, após inspeccionar o mapa todo o com o seu olhar atento, mal viu a bandeira da Guiné, no topo do mapa, apontou e disse “PAIGC”… Inacreditável!

Duas vezes inacreditável – uma, que a bandeira de um partido seja a bandeira do país, sobretudo num país pluripartidário e que se diz democrático; outra, que um miúdo que não fala nem português nem crioulo, que não sabe dizer o nome da terra onde mora, consiga olhar para um símbolo e o identifique com uma realidade política… Curioso, não?

Grande Uyé, que sem saber nos ensina algumas coisas…

Lembram-se de eu dizer que guineense só come arroz? Tivemos duas histórias engraçadas sobre isso. Uma passou-se com um rapaz, grande amigo da FEC já há alguns anos, que nos visita diariamente para consultar alguns livros, carregar o telemóvel, aproveitar da luz para estudar… É uma presença diária que também nos serve de auxílio – ajuda-nos a encher os bidões de água, toma conta da casa quando nos ausentamos, etc.

Como ele aparecia sempre no horário de jantar e nos parecia que ficava sem comer nada, começamos a convidá-lo para ficar e agora tem sempre lugar marcado à mesa. Um destes dias perguntou-nos porque razão os brancos nunca comiam arroz… :D Nós fartamo-nos de rir e justificamos dizendo que, uma vez que almoçamos sempre arroz (porque vamos buscar à tal senegalesa), ao jantar tentamos fazer sempre outra coisa. Ele ficou muito espantado… para ele branco não comia arroz e a massa é que era comida de branco!

Esta ideia foi reforçada com outra história engraçada. O Miguel e o Cirilo tiveram de ir à aldeia SOS de Canchungo tratar de qualquer coisa. Como é longe e tínhamos a carrinha da FEC nessa semana, eles foram de carro e, à vinda, deram boleia a algumas das crianças que vinham ao centro da cidade. Um dos miúdos disse ao Miguel: “Titio, a mi misti ser o branco” (quero ser branco), ao que o Cirilo perguntou logo a seguir porque razão queria ele ser branco, qual era o mal de ser preto? A resposta do miúdo foi imprevisível: “A mi misti ser o branco pa ta kome spagueti”, ou seja, o miúdo queria ser branco para poder comer esparguete!... Podia invejar-nos o carro, a casa, o dinheiro… mas não… queria ser branco para poder comer esparguete! Sem comentários…

Um dos momentos altos da semana continua a ser a hora do desenho com as crianças da escola. É quase a única oportunidade que tive, até agora, de estar em contacto com crianças. Apesar de saber que o que estamos a fazer é importante e talvez seja o melhor modelo para atingir resultados mais abrangentes e cada vez mais sustentáveis – neste projecto, com os setenta e cinco professores que temos, só na região de Cacheu, estamos a conseguir atingir cerca de 3500 crianças – tenho de confessar que, por vezes, sinto a falta das aulas e dos alunos, do ambiente de uma sala. Tenho assistido, e vou assistir, a muitas sessões… mas não são minhas, nem posso intervir… e nisto sou um pouco egoísta! :D

O Natal foi-se aproximando quase sem darmos por isso, pelo menos exteriormente. Nada fazia lembrar o Natal – não há frio, não há lareiras, não há luzes nas ruas, não há correrias para comprar presentes, não há doces… Foi uma fase estranha…

Duas semanas antes chegou uma encomenda da minha família de Santo Tirso e alguns cartões de Natal… tão engraçado! Partilhamos com as nossas (muitas) visitas os doces tradicionais de Portugal e a partilha foi um sucesso. Com isso e com o bonito presépio que compramos e montamos em nossa casa, o clima ficou mais natalício.

Quando o Cirilo regressou de uns dias de férias, na semana anterior ao Natal, refizemos o presépio, uma vez que ele nos disse que a tradição na Guiné é a de colocar o presépio num canto. Com o seu toque artístico, ficou lindíssimo!

Para melhor conseguir o espírito natalício, coloquei música de Natal todas as noite no computador e cantarolei todo o dia… ao fim de uns dias nem o Miguel nem o Cirilo já me podiam aturar! :D
Na semana do Natal chegou outra encomenda, desta vez da mãe do Miguel. Tantos mimos… começamos a ficar mal habituados! :D (e sabemos que ainda receberemos mais duas nos primeiros dias de Janeiro)

Um dos momentos altos da minha semana foi a festa de Natal da missão católica aqui de Canchugo – as irmãs convidaram-nos a estar presentes e foi uma alegria. Mitigou um pouco as saudades das festas de Natal que ajudo a preparar quando estou por aí.

A festa foi muito participada, com as crianças a cantarem músicas de Natal e a representarem cenas da vida de Jesus, um exemplo universal de amor e entrega aos seus ideais.

O presépio, onde uma Maria negra, acompanhada por um José negro, embalava um Jesus Menino também negro, faz todo o sentido neste contexto onde a alegria e a felicidade no pouco são, de facto, uma realidade.

Em poucos dias, Bissau ficou despovoada de brancos… todos partem para passar o Natal com as famílias, nos seus países. Nós fomos ficando, sendo que cada ida ao aeroporto levar alguém era mais um momento difícil com o desejo de partir.

A véspera de Natal foi passada com outra colega da FEC que também ficou por cá – fomos jantar à casa Emanuel, uma casa de meninos abandonados. Foi engraçado, mas não ficamos muito tempo pois queríamos ir à missa do galo, que aqui é às 21.30!

Não são fáceis estes momentos de Natal – ficamos mais nostálgicos, sentimos falta dos nossos hábitos e das nossas tradições. Sobretudo sentimos falta dos nossos, daqueles com quem costumamos partilhar os momentos mais importantes da vida. Os telemóveis ajudam a diminuir as distâncias, mas não conseguem evitar que uma lágrima corra ao ouvir as vozes que nos faltam e nos sentem a falta… Por vezes é bom sentir a dor da separação, faz-nos perceber que estamos vivos e que criamos laços!
No final da missa regressmos à pensão e estivemos ainda um pouco na varanda… o calor puxava e olhar as estrelas faz bem à melancolia!

Apesar de poucas coisas externas o demonstrarem, o Menino também nasceu aqui na Guiné, colocando um sorriso nos lábios de toda a gente. Festa é sempre festa...
No dia 26 partimos para a ilha de Santiago, em Cabo Verde. O que contar sobre estes dias?

Umas férias fantásticas, e atrevo-me a dizer, bem merecidas – beleza natural lindíssima, calor, praias, luxos europeus (água nas torneiras, luz 24h/dia, estradas alcatroadas…). Alugamos um carro e visitamos toda a Ilha, que já está bem preparada para o turismo, a anos-luz da Guiné.

Dos locais a visitar, podemos salientar a cidade da Praia, construída junto ao mar, com umas vistas lindíssimas e um ambiente citadino muito cosmopolita; o Tarrafal, colónia penal do tempo do Estado Novo, que merece ser visitado sobretudo para não deixarmos esquecer (à imagem dos campos de concentração nazi); a Cidade Velha, primeira cidade construída pelos portugueses em África, considerada património mundial da humanidade, local com um espírito muito próprio e uma paisagem inesquecível; a praia de S. Francisco, completamente paradisíaca; e a vila de Pedra Badejo, onde acabamos por nos fixar durante alguns dias maravilhosos (iríamos para a ilha do Fogo mas o mau tempo do mar não permitiu que o barco partisse!).

Como em qualquer outro final de ano, estão a ser uns dias óptimos para fazermos o balanço do ano que termina, reflectirmos nos aspectos menos e mais positivos, agradecermos as conquistas, vencermos as derrotas e estabelecermos propósitos para o novo ano.

Agradecemos a todos os que nos acompanharam ao longo deste ano e desejamos que se mantenham por aí…

Vai ser um grande 2010! :D

2 comentários:

Amor à Camisola disse...

Amigos, grande ideia este blog, que nos permite saber de vocês, como estão, o que estão a fazer!

E podem crer que tenho rogulho de ser vosso amigo! São mesmo muito especiais!

Força para 2010 e cá voltarei amiúde!

Beijos e abralços, João Nuno

Sophia disse...

Kuma di kurpu? Felidade do destino: conheci a tua Teresa no fim-de-semana de 6 de Março na Madeira, onde estive a lançar o meu livro!!! Mandei mantanha por ela. É inspiradora, gostei de a conhecer. Espero que se estejam a dar bem nesse pedaço tambem meu. Beijo grande aos dois, Sofia Branco