05/12/09

3 de Dezembro de 2009



Passou um mês… não a voar, mas a ritmo acelerado, disso não há dúvida!
Como balanço, podemos assinalar que são mais as coisas boas que as más – a falta da água e a necessidade de uma pinturinha na casa poderão ser mesmo marcados como os pontos mais negativos… claro que ao nível do trabalho temos às vezes uns stresses devido a tudo ser bastante novo, mas, isso seria normal em qualquer trabalho novo em qualquer parte do mundo! Também é verdade que as saudades vão apertando, o Natal aproxima-se… sentimos falta de alguns luxinhos mas… nada que não se resolva de forma mais ou menos criativa!

Dou um exemplo, em Canchungo há apenas dois ou três locais onde se pode comer fora – o sr. Rui, um cabo verdiano, que tem sempre peixe grelhado, uma senegalesa onde se come todos os dias Txep (arroz com peixe ou carne) e a dona Maria (outra cabo verdiana). Como este último é caro (para o nível de vida cá), só lá fomos uma vez, em dia de festa! Ao sr. Rui vamos um almoço por semana, para apreciar o belo do peixe grelhado. Os outros almoços vamos buscar à Senegalesa, onde comemos os três por 1,5 Euros… Bem, mas perdi-me na conversa. O que eu queria dizer é que mesmo nestes sítios não há sobremesa, pois não é hábito de cá. Durante algum tempo só comemos bananas mas quando o desejo de um doce apertou muito, lá puxamos da criatividade e conseguimos descobrir num Nar (loja) daqui um carregamento de leite condensado!! Ficamos maravilhados! Agora temos sempre uma lata de reserva em casa e quando nos dá aquele sentimento de vazio, só preenchido por uma coisinha doce (sabem como é, não sabem?) lá fazemos uma salada de banana bem regada e ficamos logo outros! :D

Claro que em Bissau é muito diferente – há vários locais onde comer bem e com direito a sobremesa e tudo! Já fiz a maravilha de ir jantar a um sítio barato, também senegalês, e depois ir a um desse sítios mais finórios comer só a sobremesa! :D Há coragem para tudo, quando toca à gula! Como lá diz o ditado popular sobre os pecados capitais, “contra a gula… paciência”! :D
Mas como estava a dizer, o mês fechou em alta! E isso é o mais importante. É o que nos mantém por cá!

Foi óptimo ler os primeiros comentários ao nosso blog! Obrigados a quem os fez! Estamos cá porque acreditamos no que estamos a fazer, acreditamos que podemos fazer um pouquinho de diferença e porque tornando a nossa vida mais útil também nos sentimos muito mais felizes. Puro egoísmo, no fundo!

Mas continuem a escrever no blog, ou para o mail, porque quando temos net é óptimo percebermos que “quem desaparece” não é esquecido e que continuamos nos vossos corações. Foi por isso que decidimos fazer este blog, para que possam continuar a participar da nossa vida, como se estivéssemos aí e nos juntássemos nalguma esplanada (ou diante de alguma lareira, talvez mais adequado), ao fim do dia, a responder ao costumeiro convite (mas nem por isso de menor valor) “mas então, conta lá o que tens feito!”.

A semana passada acabamos as visitas exploratórias às escolas. Agora, eu voltarei em Janeiro quando começar a observar aulas dos professores-alvo do nosso projecto. O Miguel voltará só no final do ano pois andará entretido com outros afazeres no entretanto.

O fim-de-semana foi passado em Bissau onde terminamos a formação inicial dos formadores guineenses que darão a formação da parte da FEC. Foi uma experiência muito rica, de grande troca de vivências. Alguns destes formadores dão aulas desde o tempo colonial… custa-me sempre ouvir como recordam o tempo “dos portugueses” como um tempo de maior riqueza e bem-estar. Tento sempre fazer crítica de fonte – estarão a dizer-me o que acham que eu quero ouvir? Serão estes uma elite que foi educada pelo sistema e que portanto o defende?... tantas questões… Um deles disse-me claramente que gostava dos portugueses porque pôde estudar com eles, aprender bom português, e com isso ter podido ser professor e sustentar-se. Contou que, como foi durante muito tempo o único a falar português na sua tabanca, os portugueses do exército o chamavam para ele servir de intérprete com os homens e mulheres grandes, quando queriam negociar mantimentos ou assim. Diz que sempre lhe davam uma moeda de 50 cêntimos por ele ser o tradutor! Contou ainda que se percebia que os soldados não estavam cá por vontade – havia sempre festa quando um regimento regressava a casa, e esta era sempre partilhada com a tabanca! Alguns devem conhecer melhor o nosso hino do que muitos portugueses! Tempos que marcaram, certamente, mas não tanto como as guerras internas pelo poder!

Esta semana já tivemos reuniões cá no escritório para a preparação das primeiras sessões de formação, a terem lugar no próximo fim-de-semana. Vamos a ver como corre! Eu irei a todas as sessões dar um saltinho e ver se tudo rola (teremos cinco sessões simultâneas, em três localidades da região. Passarei o dia a correr entre viagens…).
No sábado passado foi feriado na Guiné, o tabaski, e com ele uma série de histórias engraçadas! A primeira prende-se com o facto de o calendário muçulmano ser lunar, portanto, dependente da lua… Assim, estivemos quase duas semanas à espera de saber o dia do feriado e ninguém nos sabia dizer pois este acontece no dia em que a “lua sair” e isso… só se podia saber no próprio dia!! Imaginem o que isso significa em termos de planificação! E teve de calhar logo no sábado, dia em que tínhamos formação dos nossos formadores! Como parte dos nossos formadores é muçulmana… lá tivemos de mudar as datas da formação, e em cima da hora, pois não sabíamos bem quando seria o feriado! E ficamos nós zangadas com a lua! :D

O tabaski é uma festa religiosa em que é celebrada a cena do Abraão e do seu filho, quando Deus testa a fé de Abraão pedindo-lhe a vida do filho. Curioso como o antigo testamento une as três grandes religiões do mundo… e depois andamos a matar-nos o resto de toda a História! O ser humano é algo de estranho!

O Miguel, sempre muito bem relacionado, conseguiu ser convidado a assistir a uma festa do tabaski numa tabanca de Bafatá. Sortudo! Nós, mulheres, claro que não pudemos assistir. Ele há-de escrever umas linhas sobre o assunto, mas eu, que vi as fotos, até fiquei contente por não ter ido… é que eles matam mesmo alguns animais para recordar o sacrifício do cordeiro e o próprio Miguel diz que passava bem sem essa parte meia sanguinária. Mas tiraram fotos lindíssimas da cerimónia tradicional!
Apesar da sua participação, ficou bem claro que eles eram “estrangeiros” – tiveram de ficar atrás das mulheres (que humilhação!) e quando foi a hora da cerimónia na mesquita eles foram convidados a ir brincar com as crianças!! Eheheh!

Um dia destes demos por nós a pensar na “confusão tecnológica” que por aqui vai. Se por um lado é verdade que a Guiné não consegue ter um sistema de electricidade e de água canalizada, por outro, tem um sistema de comunicações móveis ao equivalente de qualquer país europeu. Aliás, a preços bem mais apetecíveis! Aqui, todos os professores com quem contactamos têm telemóvel… Não parece estranho? O nosso também é móvel, aliás. Canchungo quase não tem sistema de telefones fixos, passando directamente do nada para o telemóvel. O que não deixa de ser engraçado numa cidade sem electricidade – já pensaram como se processa a carga da bateria?? Pois… nós sabemo-lo bem pois temos sempre gente a bater-nos à porta do escritório para, nas horas em que há luz, carregarmos telemóveis… até já temos uma extensão só para o efeito! A verdade é que eles lá se arranjam, ainda que passando, por vezes, vários dias sem carga!

Esta “confusão” verifica-se a todos os níveis! Numa das escolas que visitamos, percebemos a existência de uma sala de informática. Curiosos, pedimos para ver. Era uma sala cheia de grandes mamarrachos europeus, atulhada de pó… e claro que vimos o filme todo! A associação dos filhos da tabanca, emigrados num qualquer país europeu, tiveram a boa vontade de enviar PCs para a escola dos seus familiares, mas foi esquecido o pormenor da electricidade! Soubemos, no entanto, que a associação está em negociações para instalar painéis solares na escola a fim de alimentar a sala… é demais, não é? Formas de vida quase primitivas de braço dado com a tecnologia de ponta ocidental!

A propósito disto, uma colega que esteve cá já no ano passado contou-nos uma história fantástica – ela conseguiu assistir a uma cerimónia tradicional e ficou toda contente. Algo muito étnico, com pinturas corporais, adereços da etnia, cantos e danças muito tradicionais… quando ela repara num rapaz que ao dançar emitia luz… com uma bela sapatilha moderna daquelas que tem luzinhas nos calcanhares! :D E claro que um ou outro da tabanca já tirava fotos com o seu telemóvel! África no seu melhor!
Esta semana, vimos, pela primeira vez, a grande feira semanal de Canchungo, quando fomos apanhar a sete places para Bissau. Enorme, cheia de cor, de gente, de sons e cheiros fortes. Vemo-la sempre de passagem, nunca calha num dia em que estejamos por casa ou pelo escritório(… ou seremos nós que andamos sempre por fora?). Tiramos muitas fotos, é digna de ser vista!

Ainda não tínhamos percebido a razão pela qual a feira nunca calhava no mesmo dia da semana nem o critério que o determinava. Disseram-nos que era sempre no dia da semana anterior ao da feira da presente semana – explicando, se esta semana a feira aconteceu à terça, na próxima semana será à segunda. Perguntando a razão de ser desta estranheza, ninguém nos soube explicar. Um dia destes, comentando este facto com outra pessoa, chegamos à conclusão de que assim era porque na contagem do tempo manjaca (etnia principal desta zona) a semana só tem seis dias!.. Portanto, para eles, é sempre no mesmo dia! Fantástico, não? É impossível não nos surpreendemos com estas coisas! Na vida escolar e religiosa, cederam ao calendário europeu, mas na sua regulação quotidiana mantêm a tradição popular. Foi mesmo uma descoberta interessante!

Outro fenómeno engraçado por aqui é o dos transportes – como uma amiga nossa costuma dizer, ainda é dos poucos serviços que vai funcionando por aqui.
Já vos falei das sete places – carrinhas tipo passat, com sete lugares (excluindo condutor), mala reduzidíssima (onde acham que foram colocar os três lugares extra?), mas que têm a vantagem de ter preço fixo (= nós, brancos, não somos enganados) e lugar marcado. Ou seja, vamos para a paragem onde as sete places se organizam tipo táxi, por ordem de chegada, e compramos um bilhete numerado de um a sete. Um único senão… só parte quando a sete places encher, o que pode demorar bem umas horitas! Amanhã de manhã, por exemplo, terei de estar em Bissau às nove da manhã e não pude ir hoje porque trabalhei até as sete da noite, portanto… amanhã só me resta ir para a paragem, por volta das sete da manhã, e rezar para que ela encha antes das oito para eu me pôr em Bissau a tempo da reunião! :D

Mas há outras opções – existem as candongas, carrinhas tipo Hiace, que enchem até rebentar. Estas têm uma particularidade engraçada – para além de podermos levar tudo em cima do tejadilho (animais vivos e tudo), se formos ao colo de alguém só pagamos meio bilhete! E esta, hein? Bem topado! :D Ainda não tive o prazer de entrar nesta aventura radical!

Já alguém se tinha perguntado para onde vão os autocarros dos STCP depois de “morrerem”?? Pois fiquem a saber que o cemitério dos STCP é mesmo aqui, na Guiné!! Devem andar aí uns cinco a fazer a linha Canchungo/Bissau! Ainda não lhes consegui tirar uma fotografia mas esta fica prometida! Imaginem a minha cara quando vi um autocarro dos STCP a passar nas ruas de Canchungo… desatei a rir, e confesso que quase me comovi! Só me contive porque uma série de gente parou a olhar para mim… devem ter pensado “branco é mesmo estranho… nunca deve ter visto um autocarro lá na terra di branco!!” :D Também nunca experimentei mas disseram-me que demora cerca de três horas a chegar a Bissau… Sendo que de sete places fazemos numa hora…

Em Bissau há candongas, mas só até à cidade, não vão até ao centro, então, o melhor é mesmo o serviço de táxis, muito sui generis. Andam sempre pela cidade, pintados de azul e branco, e é só fazer sinal para parar e perguntar se vão para onde queremos. Quanto mais gente for no táxi, mais barato ele fica. E há preços mais ou menos estipulados. Claro que no início fui enganada, mas agora não entro num táxi sem negociar primeiro, num crioulo muito arranhado. Um dia destes, já estafada depois de três dias de oito horas de formação intensas, com um calor insuportável e morta por regressar a casa, em Canchungo, um taxista pediu-me mil francos para me levar do centro da cidade à paragem das sete places! Passei-me…mil francos pago eu de Bissau a Canchungo em sete places!! Furiosa por mais uma vez “ser tratada como branca”, e inventando umas palavras em crioulo, disparei: “A mi ka turista. N’ta trabadja lá na Canchungo. N’ta ki pa djuda. A mi ka paga dimás”… Bem, o que eu quis dizer foi que não era turista, que trabalhava em Canchungo e que estava cá para ajudar a Guiné, não ia pagar a mais, preço de branco. Explodi, literalmente! Mas a verdade é que ele ficou tão surpreendido quanto eu e, depois de uns segundos, desatamos os dois a rir, a rir… e lá me fez o preço justo! Conversamos o resto do caminho todo em francês (não falava português mas francês sim… terra estranha!) e ainda me ajudou a encontrar uma sete places, pois já era tarde e ele ficou com medo que já não partisse nenhuma e eu ficasse para ali sozinha. Guineense é simpático por natureza!

Por falar em transportes… esta semana aconteceu outra situação! A cooperação portuguesa, através do IPAD, está a iniciar observações para ver a viabilidade de instalar painéis solares em algumas escolas do nosso projecto. Veio, portanto, um representante de um ministério português, cá a Canchungo, visitar uma das nossas escolas. O Miguel, representante da FEC na região, fez as honras da casa, e o Cirilo também os acompanhou, pois é sempre uma aproximação da FEC à comunidade (para além de ser intérprete quando necessário). Eu, pouco dada à vida mais social (quem me conhece não se admira), decidi ficar no escritório e corrigir mais uns trabalhos que tinha em atraso. Pois foi providencial! Ao fim da tarde, liga o Miguel a dizer que tinham ficado no meio do caminho no regresso da escola, a pedir para eu arranjar transporte e um electricista e ir buscá-los! O jeep da cooperação portuguesa! Nem queria acreditar! Lá fui eu, sem saber por onde começar. Em breve cairia a noite, e quase ninguém se atreve a viajar no mato, com estradas de terra batida e lagos ainda do tempo das chuvas… Os padres não estavam, a escola já fechada… por sorte um professor da escola ouviu-me a pedir ajuda e entrou em contacto com um electricista que conhecia. Arranjou também uma candonga para irmos. Foi uma cena de filme! A carrinha não tinha vidro da frente e os bancos estavam despregados do chão… foi uma risota o caminho todo!! Fiquei toda suja com a poeira que entrava… mas, pelo menos era bem ventilada e não tinha mau cheiro!! Eheheheh!

O Miguel, quando nos viu chegar, nem queria acreditar. O senhor do ministério não saía do carro por causa dos mosquitos, o representante da embaixada portuguesa só ligava para Bissau, de onde prometeram enviar um carro… Já era noite cerrada… felizmente havia luar! :D Depois do carro arranjado, o Miguel e o Cirilo preferiram voltar na carrinha a apanhar o fresco! Quanto nos rimos! This is Africa! Ah! E sabem o que aconteceu ao carro de salvamento que enviaram de Bissau? Rompeu o tubo do óleo e, como era já de noite, não conseguiram compor a pernoitaram no caminho. Quanto não valem as boas relações com a comunidade local… em caso de aflição não é Bissau que salva ninguém!!

Eu fiquei toda orgulhosa! Não é todos os dias que se tem oportunidade de ir salvar o marido e uns quantos caras pálidas ao meio do mato! :D Sorte tiveram os outros por o Miguel também lá estar!

E foi mais uma aventura cá no mato! Depois deste ano aqui, penso que ainda poderemos aguentar mais uns anos sem televisão em Portugal… teremos muitas histórias para recordar! :D

Um abraço apertado,
la salete e miguel

4 comentários:

Lurdes Silva disse...

Olá, é sempre bom receber mais noticias, adorei ler todas estas peripécias, nem me imagino sem água e sem televisão. Faço votos que tudo continue a correr sobre rodas, e aguardo mais noticias ansiosamente. Aqui continua o mau tempo.
Bjos doces

Unknown disse...

Olá meus amores!

Ler os vossos relatórios é fabuloso, uma pessoa sente-se a ser transportada para uma realidade tão diferente e tão cativante.. sabem mesmo fazer história.

Sempre perto,
manela

Pedro Ribeiro Pereira disse...

Como alguém dizia, a escrita é o melhor dos transportes. Guiné, terra tão perdida, e, ao som e ritmo dos vosso relatos, tão extraordinária. Que tudo continue a correr pelo melhor, como merecem.

Um abraço,
Pedro Ribeiro Pereira (Ermesinde)

Bruno Marques disse...

Olá Miguel e Salette.
Estou a adorar ler as vossas notícias!
Que mundo de novas experiências e peripécias!!!
Estou mesmo com vontade de conhecer a terra das peripécias africanas. tenho de combinar uma data para a minha ida a Guiné!. enviem-me o numero do vosso "télélé" para combinarmos!

Grande abraço e saudades vossas!
Bruno