01/02/10

Notícias da Guiné VI



Já não chove há três meses e o pó tomou conta do ar. Estamos na época fresca… dizem por aqui. Nós só podemos rir-nos face à relatividade das coisas. Para nós o tempo está óptimo – nas noites e madrugada pode baixar aos quinze graus, durante a tarde pode atingir os trinta. À noite, temperatura óptima para dormir, embora peça o lençol. De dia, perfeito para a manga curta e para o fresco dentro do escritório. Verão constante! Difícil imaginar como será a época quente!

Depois das maravilhosas férias em Cabo Verde, o regressa à vida real em Canchungo. Estranho voltar depois do luxo de Cabo Verde. Sei que quem visita o arquipélago, vindo de Portugal, pode levar uma imagem de alguma pobreza, de algum “atraso”, no entanto, para quem vem da Guiné, Cabo Verde é Europa completa – asfalto e paralelos, edifícios altos e modernos, carros ligeiros, luz, muita luz por todo o lado, água canalizada, urbanismo… A praça central da cidade da Praia, capital de Santiago, é lindíssima (de construção portuguesa), cheia de vida, música e cor, e jovens sentados com o seu portátil nas pernas a aproveitar a internet wireless que a câmara municipal disponibiliza! Claro que também há pobreza, mas não tem a menor comparação com os níveis da Guiné. Basta dizer que em toda a ilha de Santiago, a única que visitamos, existe luz e água canalizada (e muitas vezes quente) e que em Bissau, capital da Guiné, não é possível ter esses serviços a não ser por iniciativa privada. Sempre que falamos com cabo-verdianos e contamos que vivemos na Guiné, sem luz nem água canalizada, geramos sentimentos de pena por nós… Acho que sentiam pena por estarmos a viver em África… Porque eles não… eles vivem na EuroÁfrica!! :D A diferença que faz não terem tido guerra e terem sido privilegiados no tempo colonial com a formação de quadros técnicos que hoje dirigem, sem grandes problemas, o seu próprio país!

Mas também não achamos ser necessário tanta pena de nós! É verdade que no dia do regresso a Bissau estávamos um pouco “deprimidos” com a volta aos banhos de água fria e de caneco, à programação da vida e do trabalho em função dos horários da luz (já pensaram como será tomar banho de caneco às escuras?), às inevitáveis baratas (ou um ratito perdido) com que por vezes somos surpreendidos… Mas bastou chegar a Canchungo para nos sentirmos “em casa” e felizes por voltarmos a estar com aqueles que também já são “os nossos”.

O trabalho cá esperava por nós! Entramos no segundo trimestre cheios de actividades e novas tarefas. O Miguel que o diga, que não tem parado um minuto, numa primeira visita a todas as escolas das missões católicas na Diocese de Bissau (que engloba as regiões de Cacheu, Oio, Biombo, Bolama e sector autónomo de Bissau), a fim de avaliar o seu modo de funcionamento e iniciar a implementação de um manual de procedimentos comum a todas escolas da Guiné. É um trabalho muito engraçado, porque lhe permite um contacto muito directo com a realidade educativa do país e com os muitos estrangeiros a operar na Guiné, no entanto, é também cansativo pois todos os dias viaja entre uma e outra missão, anda sempre com a casa às costas e, sobretudo, só estamos juntos ao fim-de-semana. E assim o tempo custa mais a passar, é uma realidade! L

Eu cá ando entre observações de aulas de manhã, preparação de sessões de formação, correcção de provas, relatórios e outro trabalho “administrativo” à tarde. Coisas que eu gosto de fazer, não me posso queixar!

Já visitamos a escola de Bidjope para reunir com a comunidade e lhe darmos a boa notícia de que há um grupo em Portugal que, sensibilizado com a falta de condições da escola (o que a obrigaria a parar as aulas mal a chuva começasse) mobilizou esforços para poder financiar uma escola de construção definitiva para a comunidade. Ficaram muito felizes! Estavam reunidos os homens grandes e as mulheres grandes da comunidade (os que já passaram pelos ritos de iniciação), os jovens, os alunos, o professor, e todos, depois de algumas intervenções individuais, se mostraram muito agradecidos pelo apoio disponibilizado. A comunidade ficou de encontrar um terreno livre e adequado para o efeito, prepará-lo para a construção e começar a fazer os tijolos. A escola já tem uma planta – terá duas salas de aula, um gabinete para o director e um pequeno armazém/despensa. Quando as paredes já estiverem levantadas e as traves de madeira estiverem colocadas nós iremos verificar tudo e comprar as chapas de zinco para o telhado, bem como os pregos para as colocar. Também nos preocupamos com a iluminação, portanto, pedimos que se fizesse duas aberturas no telhado, onde colocaremos uma espécie de chapa de plástico transparente, criando uma clarabóia.

Parece que é um sonho que está prestes a tornar-se realidade. Só falta mesmo reunir o dinheiro necessário para a construção. A recolha está a decorrer! Vamos a isso, antes que a chuva comece e a escola tenha de parar!

Estamos cada vez mais habituados à nossa nova vida e é engraçado a forma como reagimos às coisas. Falávamos um dia destes sobre isto - já não nos espanta nada ver as galinhas, os porcos, as cabras e vacas no meio da rua, passar por eles e ter de os contornar, esperar que eles passem, quando vamos de carro, para não criar nenhum acidente, mas ficamos completamente eufóricos quando percebemos que em Bissau abriu uma confeitaria! Quando é que a abertura de uma confeitaria se torna um grande momento nacional aí em Portugal? Pois digo-vos, aqui tem sido uma lufada de ar fresco! É que é mesmo uma confeitaria portuguesa (o padeiro é português)… podemos pedir torradas, tostas mistas… e bolos, muitos bolos!! Eu já cedi à tentação da bola de Berlim e acho que nunca nenhuma me soube tão bem! :D Em Bissau não se fala de outra coisa, ou melhor, entre os brancos não se fala de outra coisa… Ainda que já se vejam alguns guineenses a frequentá-la. São os ricos…

Temos reflectido um pouco sobre a inexistência de uma classe média na Guiné-Bissau, segundo nós, o grande entrave ao desenvolvimento. Pelo que nos temos apercebido, quer por conversas, quer por leituras, este é um problema económico grave e que tem a sua origem em tradições e ligações económicas que já foram abandonadas na Europa há vários anos. Explico-me: aqui existe o conceito de família alargada, com laços muito apertados e papéis muito bem definidos. Aquele da família que ascende, que possui alguma coisa, tem, obrigatoriamente, que partilhar com os outros. Desta forma, podemos ver jovens que estudaram fora do país, que encontraram um emprego razoável, a ganhar um ordenado considerado bastante bom (para a realidade local) que lhe permitiria quebrar o ciclo da pobreza familiar e criar uma nova estrutura familiar de classe média, que sobreviveria do seu ordenado, lhe permitiria juntar para a educação dos filhos ou para o seu futuro e ainda daria para alguns luxos, e vivem aflitos porque pagam a educação dos irmãos, sustentam os pais que estão velhos e não têm qualquer tipo de rendimento (não existe o estado providência), ainda tomam conta dos filhos dos tios ou das irmãs… Incrível como as redes familiares de solidariedade que permitem que África vá sobrevivendo são as mesmas que não permitem a criação de uma classe média, mais rica, que seja motor de desenvolvimento do país. Todos vão ficando nivelados por baixo… Faz-nos pensar!

Claro que estas questões estão dependentes da elevada taxa de natalidade, do casamento precoce, da prática da poligamia, da inexistência de um regime de segurança social que crie alguma auto-suficiência na velhice e/ou na doença… aqueles factores que fomos estudando na escola, característicos do “antigamente”.

Não é fácil ser-se guineense na actualidade, sobretudo porque a – aparente – instabilidade política afasta a ajuda internacional, afugenta os investidores… poderia parecer um cenário sem esperança. Mas não é esse o ambiente que se vive todos os dias!

Apesar de tudo, as pessoas são felizes, riem-se, divertem-se, cantam e dançam… mesmo na morte, que para nós é silêncio e recolhimento. Não há dia em que não haja “choro” nesta terra - música, comida e festa em nome de quem parte… para que a sua alma possa descansar em paz. Não se faz para jovens e crianças, para estas há pena, há o sentimento da perda antes do tempo. Faz-se para o velho, para o que já viveu e agora deve repousar em paz. De realçar que a esperança média de vida está pelos quarenta e dois anos, neste país!

Viver com o Cirilo tem-se revelado um bem enorme – consegue congregar o melhor que a Guiné tem, com um conhecimento da realidade do “mundo ocidental”, uma vez que viveu no Brasil cinco anos, enquanto tirou a licenciatura em Língua e Literatura Portuguesa. Ele é um grande elo de ligação entre nós e a realidade desconhecida da Guiné. Tem sido uma ajuda preciosa na nossa compreensão da realidade, sendo que também compreende os nossos comentários, as nossas estranhezas e interpretações da realidade. Por vezes, também nos ajuda a colocar as coisas numa nova perspectiva. Às vezes consegue mesmo ser desarmante. Conto um exemplo. Esta semana, estando os dois no carro na volta de uma visita de acompanhamento e observação de aulas de uma escola de tabanca, eu desabafava sobre alguns “cansaços” normais do dia-a-dia. Numa das vezes, confessei-me cansada de andar sempre a ir buscar água… Ele olhou-me com um ar muito espantado e disse “mas tu nunca foste buscar água”… Ui, que até doeu! Percebi bem o que ele queria dizer… Na verdade, eu nunca “fui buscar água”, como quase toda a população tem de fazer – ir com baldes ou outro tipo de bidões, a pé, à fonte de água mais próxima, fazendo por vezes uma grande distância, para trazer um pouco de água para o dia-a-dia da casa. Mulheres e crianças, principalmente. Aquela imagem que todos temos da África que transporta água à cabeça. Na verdade, eu estendo uma mangueira enorme, que atravessa as duas vias da avenida central de Canchungo, e vai ligar à torneira da casa dos padres, que fica em frente à nossa casa, e encho os três bidões enormes que nos vão fornecer água durante quinze dias. Na verdade, durante esses quinze dias eu não tenho que sair da minha casa para me fornecer de água. Mas na verdade, todos os dias, várias vezes ao dia, tenho de andar de baldes e canecos de trás para a frente para tirar a água dos bidões e servir-me dela durante as utilizações habituais… Percebo o Cirilo… de facto, como me posso queixar? Eu não vou nunca “buscar” água… Mas sei que ele também percebe que para mim, de cada vez que vou ao bidão com um balde para poder tomar banho, estou a ir “buscar” água… Até agora, para mim, a água canalizada sempre foi um dado adquirido e, a maior parte das vezes, mesmo sem grande sentimento de gratidão.

Apesar de todas estas compreensões mútuas, não pude deixar de me sentir um pouco “culpada” por me estar a queixar, sendo que sou muito beneficiada em toda esta situação.

Não são nada fáceis estes equilíbrios!

Ontem fui a uma escola observar uma aula. Cinquenta e seis alunos sentados no chão, em troncos de árvore ou pequenos banquinhos de madeira, a ouvir uma lição quase toda teórica e oral. Não há manuais, apenas um pedaço da parede pintada com tinta preta a servir de quadro onde os professores passam a lição, que os alunos passarão para o seu caderno. Felizmente há cadernos! São uns heróis estes professores e estes alunos! Não sei se faríamos muito melhor se não tivéssemos materiais e professores com o 9º ano de escolaridade…

Hoje é dia 20 de Janeiro, feriado na Guiné-Bissau, dia do assassinato de Amílcar Cabral, tornado dia dos heróis nacionais (em Moçambique acontece o mesmo – o dia 3 de Fevereiro, dia do assassinato de Eduardo Mondlane, também é celebrado como dia dos heróis moçambicanos). Aproveitamos para dar um passeio até uma das praias mais famosas da Guiné – a praia de Varela. Foi um passeio fantástico! Apesar de ficarmos com o corpo todo moído devido aos solavancos de muitos quilómetros em estrada de terra batida, valeu bem a pena! Sol, praia, mar, vaquinhas a pastar (ou a “areiar”… não sei bem que termo usar)… tomamos muitos banhos, jogamos cartas (o Cirilo já sabe jogar continental, mamã :D), conversamos! Foi um dia descontraído e muito bem passado! Viva o Amílcar Cabral!

Amanhã, depois de uma manhã em observações, vamos para Bissau, onde me encontrarei com o Miguel (ainda às voltas com as Missões). Decerto terei net e poderei enviar-vos mais esta partilha.

Obrigada por continuarem a manter-se desse lado!

Abraço apertado,

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