31/03/11

Notícias de Bissau-Mansoa II



chegou o calor a essa terra! gosto dessa sensação do corpo sempre molhado pelo suor a pedir um banho de água fria, do bafo quente, dos cheiros que a humidade começa a trazer…

o sérgio ralhou-me por a minha última entrada ser de 4 de fevereiro; o dom élio mandou um email com o título sugestivo “ti seguo!”, mostrando que mesmo em moçambique foram deixadas sementes e criados laços que ainda não se esgotaram; uma amiga, talvez percebendo melhor a entrega, pediu-me desculpa por não ter estado muito disponível…

por muito que, por vezes, me custe encontrar um tempo para sentar e partilhar, sinto que o devo fazer, até porque é também um momento de encontro comigo.

visitas e celebrações. os últimos dois meses podem ser condensados nestas duas palavras. dia 4 de fevereiro foi o dia da partida do miguel para portugal e da chegada de mais um grupo de amigos que vieram visitar a guiné-bissau, aproveitando da nossa estadia cá.

com alguma organização, alguma criatividade e algum esforço logístico, tudo é possível nesta terra e eu e as minhas “visitas” temo-lo comprovado. com uma dose de boa vontade e abertura de espírito a acrescentar aos requisitos anteriores… podem mesmo ter-se momentos memoráveis! :D não é por acaso que uma das expressões muito guineense é o “nô na ngenha”, que significa “nós desenrascamos”. e é mesmo verdade!

a 17 de fevereiro, dia do professor na guiné, a fec celebrou os seus 10 anos de presença no país. sob o lema “fec gb, 10 anos de caminhos partilhados e construídos”, tivemos uma série de iniciativas (ainda não todas concretizadas pois estendem-se por todo o ano lectivo) que envolveram o público a quem nos dirigimos (professores, directores, inspectores, educadores de infância, jornalistas), os nossos financiadores e parceiros (igreja, estado, unicef, união europeia, entre outros), o ministro da educação e o embaixador de portugal. foram momentos que exigiram muita preparação mas que valeram a pena – a exposição fotográfica de momentos-chave dos 10 anos está muito bonita; as apresentações multimédia, os vídeos testemunhais que fizemos com público-alvo, parceiros e até elementos ex-fec, foram muito ilustrativos do trabalho que tem sido feito; o sarau cultural trazido pelo público da bafatá e cacheu; foram mesmo momentos daqueles que permitem uma reflexão sobre o trabalho feito e nos fazem olhar para o futuro com outros olhos. acontece sempre isto quando olhamos para o passado com olhos de ver e aprender! grande lição da história!

no entretanto chegou o roberto, o meu único amigo guineense no porto, antes de eu vir para a guiné, que regressou ao seu país após oito anos consecutivos em portugal. fui buscá-lo ao aeroporto e tivemos uma viagem muito divertida durante a qual ele não conseguiu esconder o desalento de ver o seu país num estado tão… tão… destruído, talvez seja a palavra. tentei animá-lo, afinal eu sei que é possível viver-se aqui! :D desde essa noite não nos temos perdido de vista e tem sido muito interessante acompanhar o seu “regresso” a bissau. é este o nosso últmo motivo de brincadeira – ajudei à sua integração no porto, quando ele para lá foi estudar, e agora ajudo-o no seu regresso a bissau. e esta, hein? :D

a 4 de março chegou a jacinta, minha amiga de infância, como irmã, que, finalmente pôde vir partilhar um pouco da minha vida. aproveitamos a semana do carnaval para passear um pouco, gozar do desfile (que é mesmo lindíssimo, por aqui) e descansar. a jacinta prometeu escrever e enviar um texto para eu colocar aqui no blog, portanto não vou revelar nada da sua visita. mas soube muito bem!

a 14 de março chegou a minha irmã manuela e o meu cunhado, o rui. foram quase três semanas que eles passaram por aqui (também ficarei à espera que queiram partilhar qualquer coisa!). conheceram mais da guiné do que eu… :D

quase poderia abrir uma agência de viagens por aqui – há pacotes de uma, duas e três semanas, sempre com actividades para fazer, sítios novos para visitar! :D

claro que os pacotes incluem candongas que demoram dias inteiros a chegar aos locais desejados; carros que se atolam na areia e que temos de empurrar; táxis esventrados, com vidros partidos e em mau estado que também precisam da nossa ajuda, quando a ligação directa também já não funciona; indigestão com a poeira comida nas obras de Bissau (que está transformada em estaleiro); banhos de mar com sapatos para evitar picadas de raia; barcos fedorentos onde os animais partilham os espaços das pessoas; cedência de passagem aos animais que se cruzam connosco - porcos, vacas, cabras, galinhas; horários flexíveis para tudo; picadas de mosquitos e de outros milhares de insectos desconhecidos; … uma viagem de sonho! :D

foi muito bom tê-los todos por cá (as fotos de tudo isto já estão colocadadas aqui, em baixo do texto)! é óptimo receber a visita de companheiros da nossa vida, da nossa “outra vida”.

já muitos terão ouvido a minha teoria de que não me é fácil integrar as duas vidas numa linha contínua. duas vidas, leia-se, a vida europeia e a vida africana. não sei se é uma forma de eu conseguir sobreviver bem e com sanidade mental nos dois locais, mas a verdade é que me parece que tenho duas dimensões na minha vida e que vou saltando de uma para outra. por isso mesmo, não posso deixar de confessar que, às vezes, me parece estranho estar com pessoas de “uma dimensão” na “outra dimensão” (se algum psiquiatra me quiser consultar depois destas afirmações… será compreensível!).

por outro lado, é uma sensação muito boa sentir que, finalmente, essas pessoas me compreendem um pouco melhor. quem esteve em experiências destas sabe que uma das dificuldades é chegar a portugal e tentar contar como é a vida aqui, responder às perguntas, entrar em discussões que muitas vezes não têm qualquer cabimento para nós. por isso não é de estranhar que, quando se regressa, nos apeteça muito estar com os colegas que também estiveram connosco. partilhar o que se vive não é fácil, assim como não é fácil a tarefa de quem nos quer compreender. tenho muitas pessoas à minha volta que se esforçam por isso e com quem eu tenho uma dívida de gratidão por estarem lá mesmo quando não percebem(iam) o que vai (ia) na minha cabeça. mas partilhar a vida por alguns dias é uma experiência riquíssima. a jacinta, que esteve sempre presente na minha vida, e que viveu intensamente o regresso da minha primeira viagem, em 2003, disse que só agora percebia, de facto, muitas das minhas partilhas, muitas das dificuldades que tenho de superar sempre que regresso.

a ideia de receber visitas assusta muitos colegas por aqui, e é fácil perceber o porquê…

muitas vezes, para conseguirmos encontrar algum equilíbrio que nos permita viver aqui de forma saudável (mentalmente falando), temos de deixar de fazer algumas perguntas; temos de nos habituar ao “anormal”, ao “estranho”; temos de encontrar novos padrões de normalidade; temos de calar algumas idealizações e aprender a viver com o real, com as limitações dos outros, com as nossas próprias limitações. receber visitas que nos questionam sobre toda a realidade, sobre os outros e sobre nós, coloca dedos nas feridas, volta a criar incomodidades, volta a trazer desequilíbrio.

acho isso saudável, não gosto de adoptar atitudes acomodadas, não gosto de deixar de pensar sobre as coisas. receber visitas pode ser desgastante, porque exercício de aprofundamento e de reflexão sobre a(s) realidade(s), mas também pode ser refrescante, se tivermos a disponibilidade e a coragem de nos abrirmos e de tentarmos ver as coisas com a abertura da primeira vez, de nos questionarmos e avaliarmos as nossas atitudes perante as realidades.

realidades essas que, de tão diferentes, nos interpelam todos os dias, a todos os momentos. termino com um episódio simples e real que ilustra o quão diferentes: umas amigas minhas estavam a tirar fotografias a uma mamã que estava com o bebé às costas, como se utiliza em áfrica, e ela ficou muito admirada por elas a estarem a fotografar numa cena tão banal. uma delas sentou necessidade de justificar, perante a mamã, o porquê do interesse, dizendo que para nós era uma cena bonita, estranha, pois em portugal as mulheres não colocam os filhos nas costas. a senhora, muito espantada perguntou à minha amiga: “então como é que as mulheres trabalham?”

palavras para quê?...

estamos juntos!