05/11/10

Notícias de Bissau II


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há bichos… bichos por todo o lado, milhares de tamanhos, feitios, cores e diferentes graus de incomodação… bichos que nos caem em cima vindos de todo o lado… bichos… a guiné é a terra dos bichos! não há mosquiteiro que proteja!

sinal do fim da chuva, do aperto de calor durante um mês, e promessa de dois ou três meses mais amenos, em seguida.

com a mudança do tempo todo o mundo ficou doente entre gripes, constipações, narizes e gargantas… eu não escapei, mas o miguel sim. quem diria!

por aqui tudo bem!

tem sido engraçado receber uma equipa nova, com uma visão refrescante sobre tudo o que acontece. para alguns é mesmo a primeira vez em áfrica, o que é sempre muito marcante. um dos novos colegas tem observações muito engraçadas sobre o que vê. uma das coisas que mais o marcou nestes primeiros tempos foi o facto de ver porcos por todo o lado. isso fez-me voltar a reparar nisso… de facto, eu já nem reparo que há vacas, porcos, cabras e galinhas a circular nas ruas. para mim, estranho é chegar a portugal e não ver um único animalzinho a dar o seu colorido às ruas!

eu e o miguel falamos nisso de vez em quando - não queremos deixar de nos espantar com as diferenças que esta vida nos proporciona. não queremos que tudo passe a ser “normal”. temos de nos manter atentos! outra coisa da qual falamos regularmente é sobre o risco que corremos de ficar “desencantados” com o nosso trabalho, com a guiné, com áfrica. é muito normal entre as pessoas que vivem a sua vida em locais destes que, passado algum tempo e como resposta às dificuldades sentidas, à imobilidade das coisas, ao ritmo lento com que tudo acontece, se sintam desiludidas, desencantadas, descrentes.

como todos, corremos esse risco. mas não queremos ficar descrentes nem amargos. se isso acontecer, e espero que o notemos a tempo, queremos poder mudar de país, de cultura, para continuarmos a realizar um trabalho de corpo e alma, acreditando na sua utilidade e respeitando a cultura onde estamos inseridos e as pessoas para quem trabalhamos.

viver entre culturas diferentes é sempre um desafio que apenas a convivência, a abertura de espírito e o tempo podem ajudar a vencer.

durante este tempo na guiné dei por mim muitas vezes a pensar que o povo guineense não era extremamente simpático (sei que falar em “povo guineense” é um abuso de generalização e que tudo o que vou escrever em seguida está profundamente marcado pela limitação que todas as generalização têm, no entanto, é a partilha de um sentimento que me levou a observar melhor as pessoas e a tentar melhor compreendê-las). e claro que não pude deixar de o fazer, muitas vezes comparando com a minha experiência em moçambique. no entanto, muitas das atitudes que via apontavam-me para a extrema camaradagem dos guineenses, o que me deixava confusa, sem saber bem como explicar o que sentia, nem para mim mesma, nem para os outros. e, quem já me conhece, deve saber que não descansei enquanto não consegui perceber isto um pouco melhor.

na verdade, fui-me apercebendo que o povo guineense tem uma forma diferente de acolher, uma forma diferente de ser simpático. com diferente leia-se, ‘diferente da nossa’. para eles, somos nós que somos diferentes.

raras vezes ouvimos dizer um “por favor”, um “obrigado”, um “desculpe”. muitas vezes nem resposta nos dão. quando paramos um táxi e lhe perguntamos se vai para a praça, é normal que eles arranquem sem dar nenhuma resposta, percebendo nós que não, não iam para a praça (e isto acontece tanto com estrangeiros como com guineenses). também é verdade que raramente são eles os primeiros a cumprimentar-me quando vou na rua, ao contrário do que me sucedia em moçambique em que demorava horas para fazer um pequeno percurso a pé só porque todos me paravam e queriam conversar comigo.

o guineense parece-me mais desconfiado, tem mais ‘o pé atrás’. quem sabe como explicar isso? a diversidade de povos num espaço tão pequeno? a colonização mais intensa? a guerra colonial e civil que os transformou em potenciais inimigos uns dos outros? assim de repente não sei explicar. realmente, à primeira vista e segundo os parâmetros de uma cultura mais europeia, penso que talvez os guineenses não sejam um povo “simpático”.

no entanto, têm outra característica fantástica, muito perdida no mundo - a solidariedade, a camaradagem, como há pouco disse. não há nunca quem fique sem comer quando chega a uma ‘morança’, à hora da “bianda”. não há quem fiquei na estrada porque há sempre quem pare e ajude, não partindo sem que tudo fique ‘dritu’. não há quem fique de pé porque há sempre lugar para mais um em qualquer banco. não há ladrão que fique sem uma boa sova porque todos se juntam para o apanhar e o fazerem pagar até devolver tudo o que tirou. é mesmo impressionante!

uma das coisas que me acontece com mais frequência tem a ver com as compras (para além da ajuda na estrada uma vez que o jipe continua a avariar a um ritmo alucinante!!). bandim é o nome do grande mercado de bissau, um local onde tudo existe, mas mesmo tudo! um enorme centro comercial a céu aberto, dos dois lados da estrada principal que leva o aeroporto à entrada da cidade, cheio de cores, cheiros (nem sempre agradáveis), sons… um daqueles sítios onde a guiné existe a plenos pulmões! acontece-me por diversas vezes perguntar numa ou noutra banca se tem isto ou aquilo, coisas mais ou menos complicadas (uma tripla mas com pinos finos para poder entrar nas tomadas modelo italiano da casa onde vivo. ou um adaptador, talvez…) e a verdade é que nunca vim embora de mãos vazias, não tanto devido à minha perícia em compras (quem me conhece sabe que não é uma das minhas qualidades) mas pela atenciosidade de algum rapazote de uma qualquer banca que me oferece ‘a lata de pernas para o ar feita banco’, me põe a tomar conta da sua banca e desata a correr o bandim todo à procura do que eu quero… nunca vi tal! e depois vende-mo pelo mesmo preço que acabou de pagar por ele! Só para que nunca fiquemos sem o que precisamos! com a água acontece o mesmo - gosto sempre de água fresca e nem sempre é fácil encontrar porque para se vender água fresca é necessário que a ‘banca’ tenha luz, o que não é provável que aconteça, portanto já estou mentalizada para me adaptar… mas a verdade é que nunca fiquei mal porque há sempre uma criança por perto que é mandada pelo vendedor a outra parte para me comprar ‘iagu frescu’…

um destes dias ia para a praça, para o francês, e apanhei um táxi. eu era a primeira cliente e sentei-me no lugar da frente. depois foram entrando outras pessoas pelo caminho. um dos senhores indicou o sítio para onde queria ir e eu percebi que o condutor, um rapaz novo, tinha ficado com uma cara de dúvida. Achei que ele tinha ouvido mal e repeti eu o local. percebi assim que o rapaz não sabia mesmo qual o caminho a seguir. Eeeu, num crioulo aportuguesado lá o fui orientando pelas ruas de bissau (‘bu bira na mon direita, dipus bai reto, gosi bu bira li”…). os senhores do banco de trás iam perdidos de riso - a branca, estrangeira, a falar crioulo e, ainda por cima, a indicar o caminho. meteram-se na conversa e ficamos todos em grande cavaqueira. aí o rapaz do táxi explicou-nos que era o seu primeiro dia como taxista e que nem era de Bissau. já cá tinha vindo mas era de uma região do interior. foi uma risota geral! e mais nos rimos quando, chegados aos diversos destinos de cada um de nós, ele nos perguntava quanto costumávamos pagar por aquela distância, porque nem sabia os preços!!! só na guiné, mesmo!

outra história que prova o grande espírito de solidariedade, e a responsabilidade que isso traz, dos guineenses foi uma passada com uma grande amiga, no ano passado. penso já ter contado que o grande transporte entre as regiões é a 7 places e que esta só parte quando se tiverem vendido os sete lugares, o que se pode transformar numa espera interminável, como devem perceber. esta minha amiga andava a viajar e tinha de apanhar várias 7 places ao longo do caminho (quando fui à gâmbia, penso que tivemos de apanhar quatro até chegarmos ao nosso destino), o que se foi tornando cada vez mais desesperante pelo tempo da espera entre cada uma. já mesmo a apanhar a última que a traria a bissau, essa minha colega ‘passou-se’ e teve uma atitude ‘à branco’ (pois… às vezes não se consegue mesmo evitar! :D) - decidiu comprar os bilhetes que faltavam para que a 7 places pudesse partir naquele preciso momento. para o motorista não fazia problema nenhum - afinal, tinha os bilhetes todos pagos e podia partir. para os outros viajantes, também parecia ser uma boa ideia - partiam todos mais cedo!...

pois aí é que está a especialidade deste povo - nunca esquecerei esta cena por mais que viva - os outros passageiros viraram-se para a minha amiga e perguntaram-lhe como podia ela fazer uma coisa dessas, sem pensar nas pessoas que iriam chegar, que precisavam daqueles lugares a mais que ela comprou. Pessoas que teriam agora de esperar muito mais tempo para que chegasse uma nova 7 places, podendo até ficar sem transporte naquele dia…

Sem comentários…

Perante isto só posso interrogar-me sobre os meus conceitos de simpatia!

E termino com outra história só possível neste país tão descontraído e relaxado – aqui, na legislação, o dia do feriado de Todos os Santos, como em todo o mundo, é dia 1 de Novembro, mas como as pessoas querem ir no dia 2 aos cemitérios, visitar e prestar homenagem aos seus mortos, o feriado real goza-se neste dia, e não no dia determinado!

E esta, hein? :D

Uma boa semana!